É muito incrível como as vibrações contagiam a gente. A tarde caia e o pôr do sol nos inspirava ainda mais. Eu avançava a passos rápidos os caminhos do enorme Estádio Olímpico. Já nos corredores escuros, a galera gritava e saltitava. Ainda que um tanto dissipado, eu reconheci o som da banda de abertura, os novaiorquinos da Interpol. Os caras estavam tocando no palco do U2. O super telão em 360º estava aceso!
Mucho loco aquilo… A maioria cantava junto. Deu para notar que a plateia espanhola era quente.
Da penumbra deixada pela banda de abertura e pelo telão high tech surge o som mecânico: “Ground control to Major Tom…”. O timbre peculiar do David Bowie cantando o épico Space Oddity provocou um surto na galera que urrava o suficiente para abafar o som muito alto emanado pelos potentes equipamentos de som espalhados pelo estádio.
A reverberação da gritaria mais o breu total potencializavam ainda mais a sensação de que o mundo estava desabando. Bem do jeito que eu gosto! Arranquei a blusa de frio da cintura, segurei no alto e esperei: “… two, one, liftoff.” A macacada decolou e eu comecei a rodopiar a blusa no ar com Return Of The Stingray Guitar. O Bono nos chamou: “¡Hola Sevilla!”
O estádio veio abaixo com o telão que fez desnudar os caras ao palco e tinha potência suficiente para iluminar a turma da arquibancada. Na sequência, Beautiful Day veio abençoar a transcorrer de uma jornada que realmente tinha sido muito bonita e o porvir de uma noite que indubitavelmente também seria especial.
Rock n´ Roll de entrelinhas
Bastou o The Edge chegar perto do teclado para a plateia começar a espernear. O Bono até riu. New Year`s Day é uma canção forte, de militância, dessas que já se tornaram imortais e impactam na memória afetiva de todos ali. O instrumental da introdução, inconfundível, se tornou um épico. É, sem dúvidas, uma música para ser objeto de reflexão.
Num salto quântico temporal, vieram as novatas – a sapatada Get On Your Boots e a positiva Magnificent, ambas do álbum No Line On The Horizon, o qual deu ensejo à turnê. Ambas me remetem demais a Portugal, pois eu as ouvia a exaustão! Como às vezes costuma acontecer com as músicas novas, eu achei que a galera iria arrefecer os ânimos por talvez não as conhecerem, mas, ledo engano. O pessoal estava cantando junto o tempo inteiro.
Eis a primeira surpresa que me deixou particularmente feliz. Eu não esperava que eles fossem tocar Mysterious Ways. Ela, que já tem uma levada deliciosa, veio numa roupagem mais dance que caiu super bem na proposta da turnê. Com os braços aos céus, nos fartamos de dançar. Para o nosso deleite, a música foi emendada num trecho de My Sweet Lord, do George Harrison. A temperatura subiu.
Entrelinhas de riffs distorcidos
Na sequência, Elevation, trilha sonora da versão cinematográfica da arqueóloga dos vídeo games, Lara Croft, em Tomb Raider. Sobe temperatura… Until The End Of The World. Essa canção tem uma peculiaridade interessante: a guitarra distorcida da introdução nos dá a impressão de estar apartada do restante da faixa, como se fosse uma espécie de anúncio. E é. Bastou este prelúdio para fazer o termômetro estourar.
A letra da música, o cunho religioso, o tom em que o Bono a canta e os arranjos dela surtem o efeito de um tijolo. Efeito este abrilhantado por um trecho da lindíssima Anthem, de Leonardo Cohen. Acho admirável como a banda nos propõe entrelinhas.
Os roqueiros da Vuvuzela
O primeiro bloco do setlist foi a injeção de adrenalina, o choque elétrico na galera. De fato, estava todo mundo muito pilhado, inclusive o Bono, que mais parecia uma paçoca, de tão suado. Surpreendeu-me o moral dos caras em tocar oito músicas eletrizantes, em tom alto, assim, de bambu arreado! Pausa para apresentar a banda.
Numa alusão à Seleção Espanhola de Futebol campeã da Copa do Mundo da África do Sul – marcada pela zoeira infernal das vuvuzelas e pela polêmica bola Jabulani – o Bono colocou o time em campo: apresentou o Adam Clayton como o goleiro Iker Casillas, num comparativo de que o baixista é o bonitão e pegador da banda.
Larry Mullen Jr., “the very young, el nino”, foi apresentado como o então juvenil (e chato) Fernando Torres. Gargalhadas. Quanto ao The Edge, o Bono pediu para que escolhêssemos entre os meio-campistas Xavi Hernandes e Andres Iniesta. Geral berrou o nome do exímio Iniesta). Ele, o Bono, se auto sugeriu Sergio Ramos. Catimbeiro, mas é um excelente back central.
O arrefecimento do clima com as baladinhas
I Still Haven´t Found What I´m Looking For foi cantada em uníssono, lindamente, sem qualquer descompasso, por todo o estádio. Celulares foram acessos. Parecia até uma prece. O Bono nos acompanhou em pedaços de estrofe somente para acertar a defasagem do tempo causada pela dissipação do som.
De bônus, fomos presenteados com um trecho da inspiradora Many Rivers To Cross, do Jimmy Cliff. Para quem não conhece, tomo a liberdade de vos apresentar:
Vieram North Star + Mercy. A primeira, sobra de estúdio do álbum How To Dismantle An Atomic Bomb (2004), foi tocada pela primeira vez ao vivo nesta turnê. Ela nos foi apresentada crua, somente guitarra e voz. O efeito foi muito emocionante, pois, ao contrário de mim, que não conhecia a letra, a galera estava afiada. Aliás, a música é muito bonita. A segunda, inédita, foi lançada na turnê 360º.
In A Little While teve sua doçura acentuada pelo verso “A little girl with Spanish eyes” em que o Bono a cantou deitado no colo de uma jovem espanhola e depois saracoteou com ela pelas passarelas do palco gigante.
Acho muito válida essa aproximação que o Bono faz questão de cultivar com as pessoas, não sei se para lhes dar a chance de “tocar” (ainda que de modo efêmero) o que elas consideram um sonho ou se para lhes mostrar se tratar de algo real. Na sequência, emendada, veio então a segunda gratíssima surpresa que, para mim, foi o momento mais surreal do show.
O Concurso Miss Sarajevo
Miss Sarajevo foi inspirada num Concurso de Miss realizado na capital da Bósnia, então sitiada pelos sérvios, numa inteligente manobra para mostrar ao mundo as mazelas da guerra civil. Funcionou. A foto das vencedoras que seguravam uma faixa escrita “Don´t let them kill us” (Não deixem que eles nos matem) se dissipou feito pólen.
A canção Miss Sarajevo
A letra de Miss Sarajevo, com a permissão da licença poética, é um ensaio sobre a cegueira. Sempre que a ouço, sinto que uma bigorna foi lançada. A ouço em silêncio. Naquele momento, na contracorrente da galera, permaneci em silêncio.
Quando chegou na estrofe que na versão de estúdio é cantada em Italiano pelo Luciano Pavarotti, deduzi que o trecho seria substituído pelo sampler, como usualmente é feito. Mas não. O Bono surpreendeu a todos ao fazer, honradamente, as vezes do respeitável tenor cantando em claro, afinado e muito bem pronunciado Italiano. A plateia ficou muda.
A música foi lançada em 1995, quando eu tinha 15 anos. Tempos depois, ao aprender a Língua Italiana, nunca me ocorrera resgatar a estrofe. Agora, pelos lábios do Bono – que respeitosamente não se travestiu de cantor lírico – a bonita e macia entonação natural da voz dele foi descortinando, pela primeira vez para mim, a força daquela estrofe:
“Dici che il fiume (Você diz que o rio)
Trova la via al mare (Encontra o caminho junto ao mar)
E come il fiume (E assim como o rio)
Giungerai a me (Você chegará até mim)
Oltre i confini (Além das fronteiras)
E le terre assetate (E das terras sedentas)
Dici che come fiume (Você diz que, assim como o rio)
Come fiume… (Como o rio…)
L’amore giungerà (O amor chegará)
L’amore… (O amor…)
E non so più pregare (Eu não sei mais orar)
E nell’amore non so più sperare (No amor não consigo mais ter esperança)
E quell’amore non so più aspettare (E neste amor, não sei mais esperar)“
Surpreendida pelas italianices
Sorrindo, eu admirava o Bono lançar mão do ‘r’ retroflexo e do stress timing, tão característico do Inglês, em favor do cuidado na pronúncia do ‘r’ vibrante da silábica Língua Italiana. Olhei ao redor. Muitos estavam com os olhos lacrimejando e saltando da órbita, inclusive eu.
Lá para o meio da estrofe, em que eu sabia que o Pavarotti jogava a oitava lá na China, o Bono teve o peito (voz de cabeça, fôlego e entonação) de fazer jus. O verso crucial “L´ amooooooooooooooooooore” ele o lançou com tanta força que até prendi a respiração.
Pelo telão, vi que ele tremeu o microfone para provocar o efeito de vibrato. Técnicas fazem parte. Ele segurou a nota. Meus sentidos registraram a saraivada de aplausos que pareciam convergir das arquibancadas para o gramado. Meu rosto estava lavado em lágrimas.
De volta à Disco!
Desesperada de medo de o Bono desafinar em Miss Sarajevo, segurei tanto a respiração que me faltou fôlego para sapatear em City Of Blinding Lights. Essa música é super astral e foi um dos pontos altos da noite. Geral se solta ao cantar “Oh, you look so beautiful… tonight!” para, na sequência, se fartar com a guitarra slide que o The Edge adora fazer. Aliás, ele se notabilizou por isso e também pelo uso dos harmônicos. Termômetro subindo novamente!
Vertigo foi o momento cômico. Famosa por ter mostrado ao mundo que o Bono não sabe contar de um até dez em Espanhol, em Sevilha pudemos lhe dar uma aula. No momento da contagem do início da música, ele chama a galera: “Uno, dos, tres…” E aponta o microfone para a multidão. Eis que surge o urro em uníssono: “C U A T R O !!!!!” Do telão, eu flagrei o blasé Adam Clayton rachando os bicos lá no palco.
I´ll Go Crazy If I Don´t Go Crazy Tonight veio totalmente transmutada em versão dance para se acabar na pista de dança. Intercalada por dois trechos de canções do Frankie Goes to Hollywood (banda britânica beeeeeem anos 80), o estádio, todo colorido em neon, de fato se transformou numa imensa e barulhenta disco. Termômetro subindo. Enquanto nos derretíamos naquele groove, entra rasgando a icônica batida da caixa. Berros.
Uplifting Songs
Sunday Bloody Sunday. Confesso que não tenho a mais remota lembrança do que se passou no palco ou telão. Apenas fechei meus olhos, bradei a canção a plenos pulmões e deixei fluir. O Bono parecia jorrar “wipe your tears away” diretamente dentro do meu cérebro. Os acordes emanados distorcidos ao se abafar as cordas da guitarra pareciam reverberar pelos meus órgãos adentro. O toque da caixa da bateria em estilo militar atravessava o meu peito. O que dizer? Outra música que já virou fenômeno tautológico.
Outra surpresa que, dessa vez, me dragou para a minha adolescência. MLK, faixa “cantinho de livro” do longínquo The Unforgettable Fire, eu a ouvia a exaustão. Sempre me remeteu a uma canção de ninar. Quase ninguém a conhecia. Lembrei-me da letra de ponta a ponta. Foi um momento particularmente especial para mim!
Walk On teve uma segunda versão do clip feita no Rio de Janeiro. É uma música curiosa porque ela é astral, inspiradora, de arranjos que a faz leve e cuja letra traz clara mensagem positiva. Por outro lado, é uma canção profunda. Inclusive, acho a última estrofe, sem exageros, edificante. Ela também foi abrilhantada por um pedaço da fofíssima You´ll Never Walk Alone, do Gerry and The Pacemakers.
Final do segundo tempo. A banda acenava seu adeus. Eu já estava com o sorriso bobo pregado no rosto fazia tempo. Enquanto a galera bradava a versão espanhola do “parou por quê?”, eu meditava sobre a minha sorte. Eu estava melhor que todo mundo ali. Escapei de baculejo e de dormir na rua. Comecei a gargalhar.
A prece: One
Voltaram. One. Discreta luz azul ao palco. Bono incrementando na guitarra rítmica. Uníssono. Enfiei as mãos no bolso, joguei o pescoço para traz, bradamos e abafamos a voz do Bono:
“Loooooooooove is a temple / Loooooooooove the higher law / Loooooooooove is a temple / Loooooooooove the higher law”
Difícil catalogar qual música do U2 que não seja um hino, mas One é dessas que sempre causa arrepios. No palco em tons do nascer do sol, um cilindro branco com o desenho de uma vela enroscada num arame farpado. Bono, à guitarra, canta a gospel Amazing Grace.
O estouro da boiada
Simultaneamente, ao fundo, discreto, entra o teclado. Outro tecladinho épico. E entra a guitarra. Outra guitarrinha de dedilhado épico. O Bono despendura a guitarra dele e chama a galera. Where The Streets Have No Name. Lembro-me da nuvem de poeira que subiu com o estouro da boiada. Ao final, o enxerto All We Need Is Love.
Pendurado por um cabo de aço, brotou por abiogênese um microfone que se parece um volante, iluminado em tom violeta. Quarta e última surpresa: Ultra Violet (Light My Way)!! A jaqueta do Bono tinha micro lâmpadas de neon que simulavam raios ultra violeta atravessando o corpo dele!
Eu surtei tanto que a blusa de frio escapou da minha mão ao rodá-la no ar. Parou longe e sumiu. Notei também que o povo abriu um buraco ao meu redor. Após o Bono dar uma de Tarzan ao balangar no microfone cintilante, ele o girou. Parecia uma moeda. Mudou de cor. Azul.
With Or Without You. Bom, cometo aqui a minha heresia: dessa música eu já cansei. Ela foi lindamente conduzida pela galera, mas eu a substituiria fácil por Gone, que é uma das minhas prediletas e creio não poder a ouvir nunca mais após o privilégio de tê-la degustado na turnê do POP. A propósito, a versão do show de 97, com o backing vocal impecável do The Edge, é melhor que a do disco.
O microfone estrelinha sumiu. O Bono pediu para acendermos as telas dos nossos celulares. Finalmente, Moment Of Surrender. Que bela maneira de se terminar a noite. A canção, forte, é um convite à reflexão.
Escolha do setlist
Pensando bem, o setlist é um convite à reflexão. Mesmo que entre um concerto e outro se troque algumas músicas, dá para notar que as canções selecionadas são muito bem costuradas. O bloco musical suscita mensagens: humanitárias, religiosas, políticas… Quantas entrelinhas advêm disso aí. Enfim… U2.
Sei que às vezes pareço uma ficha técnica, mas é por amor.
Lelena
Imagino o tanto que deve ter curtido com o Bono Vox e sua turma, Paulinha! Admiro muito o seu conhecimento a respeito das músicas e arranjos musicais de todas as bandas que curte. Dá gosto ver. Adorei o post!