Famosa pela sua beleza e glamour, a Via Veneto também abriga uma joia a nos alfinetar reflexões que talvez possam não soar tão glamourosas: as interpretações sobre a morte plasmadas num monte de ossos. É o que nos propõe a Cripta dos Capuchinhos.
Lembro-me do primeiro sorriso iluminado a me receber no escritório: Anna Benedetti. Senhora romana, de grandes olhos castanhos e muito expressivos, lisos cabelos curtos e impecável italiano. Ao saber que eu era brasileira, ela me deu um abraço apertado e disse ser o seu filho adotado, Emanuele, também brasileiro. Disse que a primeira palavra que ela ouviu em Português foi “lindo”, dita pela mulher que a entregou o bebê, ainda na cidade de Fortaleza. A Anna então nos colocou em contato.
Meio ítalo brasileiros
Combinamos de nos encontrar nos subterrâneos de uma estação de metrô cujo nome não me lembro. Lá estava ele, trajando roupas muitos largas – tipo rapper – e com biotipo de brasileiro. Cara de brasileiro e linguajar romanesco. E os modos típicos de uma pessoa muito ansiosa. Ele, agitado, porém solícito, me perguntou o que eu gostaria de conhecer em Roma. Perguntei se ele estava com pressa. Ele disse que não.
Então respondi que qualquer lugar se torna incrível se vivido com a cabeça leve. Ele sorriu e assentiu com a cabeça. E novamente me perguntou o que eu gostaria de conhecer. “Algo que não seja massificado.”, respondi. Ele se lembrou que um amigo dele havia dito sobre uma igreja que tinha uma cripta decorada com ossos humanos. Franzi o cenho, fiz uma cara gozada e abri um sorriso largo. Pegamos o metrô.
No caminho fomos tagarelando sobre um pouco da nossa história: a minha, pautada no insólito de Portugal. A dele, pautada numa adoção ilegal. Descemos na estação Barberini. O endereço, na famosa Via Veneto, não me trouxe nada que saltasse aos olhos. Era uma rua bonita e não havia muito movimento. A igreja em si não era grande ou opulenta. Entramos.
Santa Maria della Concezione fazia parte de um convento que foi demolido para a construção da Via Veneto. A igreja em si abriga um museu que consta a histórias da ordem religiosa dos frades Capuchinhos. A cripta se encontra no subterrâneo. Enquanto caminhávamos rumo ao acesso, eu notava que algumas pessoas saiam de lá parecendo estar com os olhos meio fora da órbita. Antes de descermos as escadas, a atendente disse ser proibido fotografar.
A Cripta dos Capuchinhos
No acesso, a inscrição de um memento mori (reflexão sobre a morte):
“Quello che voi siete noi eravamo; quello che noi siamo voi sarete.” (O que você é, nós éramos; o que nós somos, você será.)
Eu e o Emanuele nos entreolhamos e erguemos as sobrancelhas num gesto de concordância ante à crueza da frase que a torna um fenômeno tautológico. A cripta é um longo corredor ladeado por cinco pequenas capelas inteiramente decoradas com ossos dos quatro mil frades que viveram e morreram no então convento entre os anos 1.500 e 1.800.
As reações das pessoas é sempre algo que faço questão de observar, pois são muito interessante. À semelhança do que testemunhei na Via Appia, os suspiros vindos das preces pipocaram de cá e de lá. Ninguém se prostrou, mas eu notava pelos olhares que o macabro realmente tinha o peso que o assunto “morte” costuma suscitar. Eu, porém, não tive essa percepção.
Temas e anatomia
A disposição dos ossos são magníficos desenhos que nos apresentam temáticas e simbologias sobre a própria morte, como ampulhetas, relógios e borboletas. Em cada capela existe a predominância de um tipo de osso: pelve (bacia), tíbia, fêmur, crânio. Em uma delas tem o esqueleto de uma criança a segurar uma balança e uma foice.
O esmero daquelas composições, sem dúvida, nos remete viés “artístico”. Porém, não é só isso. É impossível ficar indiferente. A cripta nos deixa uma marca. Não se sai daquele lugar com o velho conceito de que, com a morte, a alma segue etérea; ao passo que os restos humanos ficam vazios de algum significado espiritual, vistos como reles objetos materiais.
É sensacional testemunhar e compartilhar da visão dos frades que, linda e pacientemente, transformaram um monte de ossos em objeto de reflexão e lhes deram, através de uma linguagem crua, novos significados. Eu, particularmente, gastei um bom tempo esquadrinhando cada detalhezinho, pois, de fato, é admirável a dedicação e a minúcia.
Quando saímos da cripta, também nós dois estávamos com os olhos meio fora da órbita, porém felizes. Estávamos em estado de introspecção, mas não havia peso.
A Via Veneto
Caminhando e conversando, ele apontou para algo que – agora, sim – remetia ao glamour da Via Veneto: o largo Federico Fellini nos faz rememorar o clássico do cinema, La Dolce Vita, que se passa nos arredores da rua, cujos bares e cafés dos anos 50 atraíram as estrelas de Hollywood.
Após, descendo a rua, fui registrando o que talvez ainda caracterizasse o glamour: hotéis 5 estrelas, a Gucci, a Hard Rock Café e o própria Embaixada dos Estados Unidos. Nada que me interessasse, no entanto.
De volta à praça Barberini, outra preciosidade arquitetônica do Bernini. O originalíssimo Tritão (Fontana del Tritone), filho de Netuno, a sorver a fresca água das minas romanas. Essa ponta da Via Veneto, que desemboca na praça, estava animada e convidativa. Dali compramos uma cerveja e seguimos para os arredores.
Verissimo Costa
Que delicioso e inusitado “passeio macabro na Via Veneto”. Não sabia da existência desse “ossuário”. Quando penso em Via Veneto, a única coisa que visualizo são as imagens imortalizadas por Fellini em La Dolce Vita: uma das ruas mais charmosas de Roma, com boutiques sofisticadas, arquitetura histórica única e restaurantes e bares elegantes.
Dante
Aulas de História, ao vivo, ministrada talvez conforme a intenção lá nos primórdios da criação dessa matéria, atualmente relegada, provavelmente, a um tipo de decoreba da pior espécie.