Desde que eu havia pisado em Portugal, eu observava a quantidade de pessoas – jovens, adultos, pobres, ricos, contingente de imigração ilegal, nativos – que aproveitavam o verão europeu para tirar um trocado. Trabalhos avulsos, noite sim, semana não, às vezes só mesmo para pagar um breve rolê em outro país vizinho. Contratos mensais. Trimestrais. Sem contrato. Dava de tudo.
Ao longo do trabalho de camareira no hotel, as meninas já haviam me explicado que essa dinâmica de trabalho no verão europeu é super normal. Rola grana, existe muita oferta de trabalho. Todo mundo aproveita. E nesse balaio de gato, o SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – faz vista grossa, até porque Portugal se beneficia das divisas geradas pelo turismo.
No final de setembro, faltando dois dias para o show do U2, impreterivelmente às 9h, eu trocava de roupas no vestiário do hotel quando uma das meninas chegou com ar atipicamente sério e disse que o SEF estava fazendo uma batida ali. Embora eu soubesse que era proibido trabalhar na condição de turista, eu honestamente não tinha parado para pensar no tamanho da encrenca que isso poderia se tornar. Olhei para ela meio aérea. Ela esbravejou e disse para eu tirar o uniforme rápido.
“Lá eles não podem entrar!”
Comecei a tirar a roupa. Logo após, chegou a governanta, toda descabelada, suada e bufando: “Tires logo a sua farda e corras para algum quarto. Lá eles não podem entrar!” Aí a ficha caiu. Foi só o tempo de eu afogar depressa meu braço no fundo da mochila e somente pescar a cópia do passaporte, a carteirinha do ônibus e o celular. O resto ficou no armário.
Ao abrir a porta do vestiário, dei de cara com a câmera de segurança. Fui tomada por um arrepio que gelou o meu corpo. Parecia um presságio de que algo muito ruim poderia acontecer. Como eu não tinha outra opção, sob o olhar eletrônico, corri até o final do corredor onde ficava o elevador.
A rota do elevador é sempre uma caixinha de surpresas
Quando a luz do mostrador apontou que as portas se abririam, ocorreu-me que os homens do SEF bem poderiam estar ali, uma vez que o gabinete da governança ficava no subsolo, e o térreo – que dá acesso à rua – ficava dois pisos acima. Eu estava vulnerável, embora o tempo estivesse ao meu favor. Estava vazio. Olhei atentamente para o painel.
Para a minha sorte, naqueles últimos dias, eu estava justamente trabalhando no bloco 1, então eu sabia mais ou menos de cabeça quais os quartos estavam ocupados ou vazios. Escolhi o segundo piso, pois lá havia mais clientes, então a possibilidade de o SEF importuná-los seria menor. Além disso, num caso de fuga, seriam menos lances de escada a percorrer até chegar ao estacionamento, de onde há acesso para ao bloco 2.
A saída do elevador ficava no meio do edifício. Olhei para a esquerda. Não vi o carrinho da limpeza na porta de nenhum apartamento. Corri para o acesso do corredor da direita. Lá estava o carrinho. Expliquei a uma colega de trabalho, uma ucraniana, o que estava acontecendo. Ela logo me conduziu para um quarto vazio. Era um T-0, o menor apartamento (quarto, banheiro e varanda).
Pé ante pé, fui até a cortina que cobre a grande porta de vidro que dá acesso à varanda. Olhei para fora em busca de algum rastro dos homens do SEF, mas a vista dava para o interior do resort, onde estavam as piscinas. Fechei a cortina. Caminhei cuidadosamente até o guarda-roupas. Olhei para cima. Abri as portas. Estudei uma prateleira que não fosse tão mal acabada e subi em cima. Averiguei que a altura era boa o suficiente para eu subir ao topo caso eu precisasse me esconder.
Tempo contra e ponderações
Afinal, se afugentar debaixo da cama ou dentro do armário seria entregar o ouro. Por outro lado, se eu fosse policial, o primeiro lugar onde eu iria me procurar seria justamente lá no alto. Sentei na beirada da cama rindo dos meus próprios pensamentos. Meu celular tocou. Quase morri de susto. Era outra colega de trabalho dizendo que a dona da terceirizada para a qual trabalhávamos já estava a caminho do hotel. Encerrei a chamada e programei o telefone para o modo silencioso.
Ali da beirada da cama olhei para o enorme e rechonchudo travesseiro de pena de ganso catingudo (sim, fede MUITO). Embora eu não tivesse me descabelando de preocupação, também não era o caso para eu puxar um ronco enquanto o pau quebrava lá fora. Havia muitos brasileiros e africanos que estavam ali em situação irregular, até piores que a minha. Coloquei meus braços para trás, apoiados no colchão e fiquei ali na penumbra, com a cabeça meio longe, enquanto meu corpo esfriava. O celular piscou. Era a nossa chefe.
Ela disse que já estava junto da governanta e que era para eu ficar quietinha porque havia trocentos carros do SEF espalhados pela rua que tangencia os seis blocos do hotel. Porém, a concentração estava no hotel do outro lado da rua, o qual, segundo ela, parecia ter sido objeto de denúncia, pois os funcionários terceirizados eram muitos e em sua maioria ilegais.
Ajuntou que era para eu esperar até umas 11h, pois era o tempo que a fiscalização deveria durar. Daí eu poderia descer sossegada. Eram 9:47. Com toda aquela eternidade disponível, fui obrigada a me estatelar na cama.
“Eles estão entrando!!”
Mal tive tempo para analisar as minúcias do teto negro sobre meus olhos. O celular piscou de novo. A patroa bufou que o SEF estava entrando em todos os quartos do outro hotel e que parte da tropa já estava a caminho para fiscalizar o nosso. Ela disse que uma das governantas já tinha corrido ao computador para apagar o meu nome da lista de empregados. A outra governanta estava tagarelando para eu descer até o estacionamento e seguir para o bloco 2 para eu sair pela porta de frente, como se eu fosse uma hóspede do hotel. Segundo ela, a minha aparência não levantaria suspeitas.
As linhas tortas: a lei e o racismo a meu favor
O raciocínio dela fazia sentido. Uma porque os blocos 1 e 2 têm estacionamento germinado. Outra porque eu ainda não tinha ultrapassado os 90 dias de permanência legal no Espaço Schengen: caso me pedissem algum documento lá no meio da rua, tudo bem, pois, tecnicamente, eu estaria legalmente passeando. Por fim, eu tenho a pele clara, o cabelo liso e os olhos verdes
Fui até o espelho do banheiro. A profundidade das olheiras estavam de lascar. Joguei água no rosto, lavei com sabonete para tirar o suor, umedeci as madeixas e, como poucas vezes na vida, arrisquei um penteado. Dei sorte que a roupa não estava “pra lá” como usualmente é. Eu estava com uma calça marrom tipo alfaiataria e uma camisa branca. Saí calmamente do quarto e fui avisar à colega de trabalho que eu iria embora. Ela se assustou quando falei do plano B.
Então perguntei se eu estava com cara de milionária que bate perna numa seleta praia deserta. Ela sorriu e, com aquele sotaque ucraniano terrível, disse que eu nunca tive cara de brasileira. Senti-me acalorada pelo seu sorriso, mas duvidosa em relação a minha cara, que bem poderia ser de outra estirpe de pobre, como o próprio povo de leste europeu que também é vítima de preconceito e exerce trabalho subalterno.
As linhas tortas: o estacionamento multiuso
Com o meu rosto refletido no painel do elevador hesitei muito em apertar o botão do estacionamento. Afinal, os estacionamentos são rotas óbvias de fuga. Ainda mais que os homens do SEF só teriam o trabalho de atravessar uma rua. Aliás, provavelmente já estariam no hotel.
Por outro lado, o estacionamento era um verdadeiro labirinto: depósitos, elevadores de clientes e empregados, escadas, pequenos cômodos para maquinários e materiais de limpeza. Quantas vezes não confundíamos a porta de acesso ao elevador com a da sala de máquinas? Todo mundo que começa a trabalhar ali demora a aprender a se locomover.
Eu bem que poderia sair pelo próprio bloco 1, mas eu daria de cara para a entrada do hotel da frente e provavelmente com as viaturas espalhadas pelo pátio. Seria muito abuso. A saída do bloco 2 era mais adiante, menos visada. Resolvi não dar mole ao azar. Abri somente uma greta da porta de acesso ao estacionamento e olhei de esguelha. Não havia ninguém. No entanto, lá adiante, eu sabia que havia uma câmera de segurança olhando para toda aquela imensidão.
Senti meu corpo gelar. Eu estava achando muito estranho todo aquele silêncio. Era estranho não ter nenhum homem do SEF perambulando por ali. Não sabia se era o meu medo que estava criando fantasias na minha cabeça ou se era meu aguçado senso crítico que insistia em se travestir de policial inteligente. O fato era que o olho da câmera tem a sua retina dentro de uma antessala cujo acesso muito provavelmente seria facilmente permitido para autoridades governamentais.
Os pontos cegos das câmeras de vigilância
Embora eu não tivesse uma bomba para desmontar, nem um chiclete na boca ou um clip no bolso, o meu lado MacGyver me fez pensar nos pontos cegos das câmeras. Nem precisei fazer esforço para deduzir quais seriam eles. Umas das camareiras, ainda que involuntariamente, me fez decorar todos os pontos cegos das câmeras dos estacionamentos dos seis blocos. O motivo? Cigarro.
Ela era uma colega de trabalho que fumava feito dragão e sempre dava um ninja no serviço para pitar no estacionamento, local proibido. Por ser antiga funcionária do hotel, portuguesa e amiga das governantas – também fumantes – ela sabia muito bem os cantos privilegiados para dar baforadas.
O estacionamento ainda estava com muitos carros. Para a minha sorte, ainda estava cedo em comparação ao horário que os clientes costumam sair para a praia. Para passar de um ponto cego ao outro, eu teria que passar pelos pontos não cegos. Como a boa fortuna contribuiu com todo aquele arsenal automobilístico ao meu favor, eu fugiria das câmeras passando debaixo dos carros até à porta de acesso ao elevador da copa do bloco 2.
Empurrei a porta um pouco mais a fim de evitar ruídos de porteira e passei o resto do meu corpo para o outro lado. Fui resvalando a parede até uma quina que ficava de frente para uma coluna de sustentação. Naquele ponto eu já sabia ter uma câmera, porém a coluna impediria que a câmera me visse.
Rastejando de um bloco ao outro
Até onde deu, fui engatinhando entre os automóveis e a parede. Depois tive que passar debaixo. Dos carros disponíveis ao redor, optei pela Land Rover. Não que o modelo off road chame a minha atenção, mas o fato de ser um carro alto facilitaria muito a minha vida de cobra e sujaria menos a minha roupa.
Do meu ponto de vista underground, o túnel formado pelo emparelhamento dos automóveis sugeria um longo pedaço a rastejar. É nessas horas que nos tornamos empáticos, até mesmo altruístas. Naquele momento me parecia absolutamente plausível as cobras terem peçonha e serem mal humoradas: aquilo não era vida.
Fui me arrastando depressa e de qualquer jeito até a porta de acesso ao elevador de serviço. Ele sairia direto na copa, no andar de cima. De lá eu poderia “sentir” como estava o movimento no bloco. Coloquei meio pescoço para fora do carro para me certificar que estava fora da visão da câmera. Nada. Saí depressa e fui resvalando agachada pela parede. Abri a porta depressa, escorreguei para a antessala onde fica a porta do elevador e aproximei o meu ouvido.
Cara a cara com a polícia
Nenhum ruído de movimentações havia. O caminho percorrido pelo elevador sempre dá ecos de vozes e abertura das próprias portas nos andares acima. O caminho estava livre. Apertei o botão para chamá-lo. Parei logo na copa do primeiro piso que, como de costume, estava uma zona. Eu ainda estava calma.
Peguei uma toalha marrom escuro e tentei limpar a sujeira da blusa. Saiu só o grosso. Resolvi usar o bom senso e virar a blusa ao contrário, com o lado da sujeira para trás. Afinal, creio que seria algo remoto alguém dispensar muita atenção às minhas costas. Abri então a porta de acesso ao corredor dos quartos e fui seguindo rumo à saída principal.
Enquanto eu caminhava devagar, fiquei a refletir se ali nos quartos do hotel havia despreocupados clientes ou se eram colegas de trabalho escondidos nas unidades vagas, encolhidos e imobilizados frente ao temor da deportação que nos assombrava naquele instante. Eis a saída para a rua. Respirei fundo e aprumei os ombros. Desci calmamente as escadas de pedra. Olhei de esguelha em direção ao bloco 1.
Imigração ilegal: o silêncio deprimente que antecede a deportação
Havia alguns carros do SEF. Não muitos. No entanto, havia muitas pessoas. Vi fiscais encostados nas viaturas a anotarem freneticamente sobre suas pranchetas. Ao lado deles, muitas meninas. Mais de dezenas. De diferentes nacionalidades. Muitas ainda uniformizadas. Algumas, com o olhar perdido. Algumas, de cabeça baixa, pareciam chorar. Tudo isso envolto num incômodo silêncio. Essa foi a cena que a minha retina registrou numa fração de segundo. Mas foi o suficiente para deixá-la indelével na minha memória.
De cabeça erguida e poker face, segui rumo à longínqua rotatória do bloco 6, onde a dona da nossa terceirizada me pegaria para a fuga final. E dessa mesma rotatória vinha devagar um carro da GNR na minha direção. Durante um bom tempo, essa sigla e aquele bonito logotipo me remetiam ao Guns n`Roses. Era um comparativo que me portava coisas boas. Porém, naquele momento, com os policiais de óculos escuros a me analisarem, tudo se travestiu em Guarda Nacional Republicana.
Mantive o meu ritmo e tomei o cuidado de não enfiar as mãos no bolso ou cruzá-las atrás das costas (eu tenho esse hábito). Ao passar pela viatura, fiz cruzar os meus olhos verdes contra o rayban do policial. Ele não se ateve à mancha de sujeira na camisa, caso tenha olhado pelo retrovisor.
Verissimo
Dona Armenia Balabanian em todas! kkkkkkkkk
Paula Esposito
A d. Armênia, numa lúcida política do hotel, era uma funcionária que galgou os degraus da governança, desde camareira (passando pela lavanderia, almoxarifado) até o podium. Por trás de tanta austeridade, era de se admirar a velocidade e inteligência com que ela se travestia de raposa ou ratazana. Ela já deve ter visto todas as bizarrices que se possa imaginar. Esperta que só! Onipresente!
VERISSIMO COSTA
Nunca pensei que a “Dona Armenia” fosse uma indivíduo , mas uma “amálgama” de mulheres que voce havia encontrado na posição de chefia, todas com as mesmas personalidades e caracteristicas.
Lelena
Parecendo filme de suspense…
Paula Esposito
As coisas que nos acontece quando vivemos lá fora em condições ilegais, às vezes nos deixa com a impressão de estarmos vivendo num filme: o ritmo fica diferente e os acontecimentos soam esquisitos. Mas é uma ótima escola.