Entrei no bonito carro da patroa e me refestelei na poltrona. O ronco do motor e o conforto do automóvel funcionavam como sedativo para o meu corpo exausto. A beleza da deserta e tranquila orla da Praia dos Salgados, lá adiante, indo embora, aliviava meus olhos que pareciam impregnados com aquelas viaturas, pranchetas e pessoas desoladas a serem deportadas.
A minha chefe estava muito tranquila. Aquilo me causou incômodo. Perguntei em tom quase irritadiço:
– Você me parece demasiado calma.
Ela, uma tanto lacônica, ponderou:
– Essas batidas costumam acontecer ao final dos verões, somente após a segunda quinzena de outubro, mas como te falei ao telefone, parece que o hotel foi alvo de denúncia.
– Independente do calendário, não seria o caso de a sra. nos alertar sobre a existência disso?
Ela, parecendo ter notado que eu a fuzilava com os olhos, finalmente pôs uma pedra no assunto:
– Eu mando as meninas que aqui estão ilegalmente para outros trabalhos antes do início das batidas. Tivemos azar.
Ante a displicência
Senti o meu sangue talhar com o nível do descaso, mas aquele não era o momento de objetar tamanha falta de decência e humanidade. Existem maneiras mais inteligentes de fazer isso. Ela me deixaria na rodoviária, como de costume. Para dissipar aquela nuvem negra e pensando no show do U2 que seria depois do dia seguinte, aproveitei o ensejo e a comuniquei:
– Quando saí do bloco 2, eu vi algumas dezenas de meninas detidas no hotel em frente ao nosso. A cadeia hoteleira é a mesma e não sei até que ponto os fiscais varreram a nossa unidade, onde também há muitas trabalhadoras em situação irregular, assim como eu. Não irei me arriscar. Peço dois dias de dispensa.
Ela assentiu sem qualquer objeção.
A rodoviária estava vazia. Sentei-me no saguão com mil pensamentos existenciais rodopiando na minha cabeça. Ali na lanchonete, vi o motorista do ônibus que eu pegava para retornar à casa. Ele estava almoçando próximo ao freezer dos picolés. Pouco tempo depois, veio ele me oferecendo um tablito: “Estás preocupada. O que foi?”
– Acabamos de sofrer uma batida do SEF lá no hotel.
Ele franziu os delineados sobrolhos, meditou por alguns segundos e ponderou:
– Albufeira não é uma cidade como Lisboa. Aqui é sitio de veraneio. A população triplica. Turistas e trabalhadores de verão vêm de outras cidades, de outros países. Africanos, brasileiros, romenos, ucranianos, ciganos… Muitos caem em situação irregular. A polícia sabe disso. Nós, nativos, sabemos disso. Se estás aqui ilegalmente, como pretendes ir a Sevilha? Todos os autocarros são fiscalizados ao cruzarem a fronteira, em Huelva.
O tratado de livre circulação na União Europeia ainda estava a meu favor
Expliquei a ele que, no meu caso particular, o problema seria ser pega trabalhando na condição de turista, coisa que é proibida. Embora eu ainda não estivesse em situação de permanência irregular, a colocação dele me abriu os olhos sobre a minha iminente perda de um direito fundamental (e é mesmo): o de ir e vir. Pelos meus cálculos, já em meados de outubro eu iria ultrapassar os 90 dias previstos em lei.
Mais do que a perda de poder cruzar fronteiras do espaço comum europeu, eu já correria o risco de ser pega em qualquer trajeto dentro de Portugal: desde as duas horinhas que nos separam de uma passeio em Lisboa até os quarenta minutos da minha migração pendular casa-trabalho. Bastava uma blitz qualquer. Fui tomada por certo desconforto, pois eu teria de conviver com a constante sensação de exposição e perigo.
Chegando em casa, o esposo português da minha amiga estranhou o fato de eu ter chegado mais cedo. Expliquei o ocorrido. Ele, assim como o motorista, me disse para ter cuidado, pois a segunda quinzena de outubro é a verdadeira caça às bruxas do SEF. Salientou que depois disso as batidas quase param porque as ofertas de trabalho despencam e as pessoas vão embora para outras paragens atrás de trabalho. “É uma seleção natural.”, pensei com meus botões.
Agradeci pelas informações e o chamei para me fazer companhia na cozinha, pois eu estava varada de fome. Ele então pôs água para ferver e disse que faria um macarrão com aquelas sardinhas fresquinhas deliciosas que só os tugas sabem fazer.
O U2 estava garantido. E a hospedagem?
Após o jantar, ele foi até o varal e voltou com um treco gigante, azul-marinho, de náilon e um tanto acolchoado:
– Isso é um saco de dormir. Já que não encontrastes vaga num hotel em Sevilha para o concerto dos U2, podes dormir na rodoviária ou aeroporto. É mais seguro e tu não ficas tão desconfortável.
Considerando que eu comprei o ingresso de última hora convicta de que uma cidade como Sevilha não faltaria hospedagem (errei feio), a ideia foi até razoável. Agradeci imenso e almoçamos tranquilos. Nesse meio tempo, uma colega de trabalho me ligou para saber como eu estava. Conversamos um pouco e ela me disse sobre as meninas – algumas conhecidas dela – que seriam deportadas.
Fui para o quarto arrumar meu mochilão. Tentei afastar os pensamentos ruins de um dia péssimo rogando uma prece de agradecimento à espiritualidade amiga. Ainda que um tanto envergonhada, tive que dar a mão à palmatória por ter “aparência favorável”. Afinal, eu estava bem ali.
Manhã alta. Pulei da cama, tomei um café power, joguei o mochilão nas costas e fui animada pegar o busão para Albufeira. De lá, esperei poucos minutos para embarcar no ônibus bonitão que nos levaria a Sevilha. Observei que havia uma turma da faixa dos 20 e 30 anos. Alguns nórdicos do cabelo amarelo-gema também. A maioria dos assentos foram ocupados.
O ônibus parou em Faro para o embarque de mais passageiros. Entraram duas meninas: uma morena de traços miscigenados e outra com traços um tanto indígenas. Deduzi que fossem brasileiras. Notei que elas pareciam um pouco perdidas em relação às poltronas. Meu olhar cruzou com a de traços indígenas. Então ela me perguntou se o assento ao meu lado estava livre. Respondi que sim e fiz um gesto para que ela se sentasse. A outra se sentou ali próximo.
Amizade no ônibus para Sevilha
Nos reconhecemos brasileiras e começamos a conversar. A de traços indígenas, Ana Cláudia, de fato, era da região norte (creio ser do Pará). A Rosana, do Rio de Janeiro. Ambas estudantes de pós-graduação em Coimbra. O motivo da nossa viagem? U2! Dali o papo fluiu leve, cada uma contando as motivações que nos levaram a Portugal.
Eu que, de certa forma, já estava levando uma vida de solidão, me senti acalentada pela companhia delas e pelo papo acadêmico-nerd de que tanto gosto. Eu estava começando a sentir o buraco que a ausência da vida social pode deixar em nossa vida. Isso é algo a ser conduzido com muito cuidado. Papo vai, papo vem, elas me perguntaram onde eu iria me hospedar.
Quando contei a fábula do saco de dormir do esposo da minha amiga, foi aquela gargalhada, meio do cômico e meio da incredulidade. A Ana Cláudia, ligeira, foi logo dizendo para eu acompanhá-las ao hotel para ver se seria possível pôr uma cama extra no quarto. Escancarei um sorrisão, agradeci a elas e seguimos tagarelando. Em algum momento, o busão parou. O motorista, pelo microfone, falou alguma coisa em espanhol que não entendi nada.
Olhei pela janela e lá estavam as viaturas da polícia de fronteira espanhola. Hora do pente-fino. Um policial, de deslumbrante beleza espanhola – alto, esguio, pele de pêssego, cabelos negros meio jogadinhos, olhos anis e os lábios bem libidinosos – começou a pedir os documentos. A mulherada toda começou a olhar uma pra cara da outra.
A fiscalização da Polícia de Fronteira em Huelva
A fiscalização seguia rápida, fluida. Ele parecia se ater aos carimbos com as datas de entrada contida nos passaportes dos passageiros que não eram naturais dos países da União Europeia, assim como eu e as meninas. Chamou-me a atenção, no entanto, o didático esporro que ele pagou num dos moleques nórdicos do cabelo amarelo-gema. O menino, típico pentelho dos 18 anos, disse ter esquecido os documentos no hotel. Ele era inglês e estava numa turma de outros garotos.
O policial perguntou se havia algum parente adulto “responsável” por eles. Começou o quiproquó entre o policial e a molecada. Eu assistia estarrecida àquilo. Os rapazes eram todos maiores de idade. O que a lei determina quando qualquer indivíduo maior de idade cruza a fronteira sem documentos? Ali, naquele caso, o problema parecia ser como fazer o pobre moleque descer do busão sem os amigos. Ou, como a gang deixaria o U2 de lado em solidariedade ao pequeno cretino. O esporro deixou o menino vermelho feito pimenta a ponto de chorar. Deu até dó. Coisas da estupidez juvenil. Ele não fez por mal.
O fiscal, então, fez o dossiê do menino: tomou nota dos dados pessoais, número de documentos, filiação, endereço e referências. Explicou – austero – que cruzar fronteiras não é como atravessar um quintal entre vizinhos. Acrescentou que férias em outro país não é brincadeira e que daquela fiscalização dependia a segurança dele e dos amigos. Por fim deixou o garoto seguir viagem.
Óbvio que o policial estava a modular uma concessão. Como não tenho total conhecimento da letra e interpretação legislativa, não posso afirmar que a “concessão” tenha sido ilegal. A questão é: a razoabilidade do fiscal veio do fato de o pirralho ser britânico? A razoabilidade, a julgar pelo princípio da isonomia, seria mantida caso fosse um brasileiro a curtir o U2 junto à turma de conterrâneos? Na batida do SEF do dia anterior, ainda que eu caminhasse tranquila pela rua quando cruzei com a viatura, se os policiais tivessem me pedido documentos e eu respondesse tê-los esquecido, eu teria a mesma sorte?
Na minha vez, entreguei ao fiscal o meu passaporte com os míseros 15 dias que eu ainda tinha para usufruir legalmente. Ele me devolveu o documento sem alterar uma ruga. De qualquer forma, eu tomei o esporro dele para a menino como algo para mim, pois a minha aparência física não livraria a minha cara ante um documento brasileiro fora da validade. Esse foi o momento de tomar consciência do que realmente seria a vida de imigrante ilegal.
Sevilha
A rodoviária de Sevilha estava parecendo uma concentração para o show do U2! Gente de todo lado emanava incrível astral! Muitos carregavam bandeiras dos respectivos países. Muitos vestiam blusas cujas estampas me faziam rememorar a discografia da banda. A sensação era tão boa que nem parecia ter passado apenas 24 horas de uma manhã do cão.
Talvez por estar localizada no interior do país, o calor estava insano. Se em Albufeira o ventinho que anunciava o outono já nos empurrava um casaquinho, a capital da Andaluzia nos sugava as energias com incômodo mormaço. Pegamos um táxi. Dentro do carro, eu notava que a cidade era um grande tapetão. E muito bonita. O motorista (outro gato!) nos deixou na porta do bonito hotel e nos cobrou um preço que me pareceu barato. Achei até estranho. E mais gente na rua. A Rosana levantou as mãos no ar: “A cidade inteira vai ao show?!”
A recepção do hotel estava lotada. As poltronas ao redor do saguão estavam lotadas. Observei que a dinâmica das trocentas pessoas fazendo check in e pedindo/devolvendo chaves estava pesarosa para as recepcionistas. Elas já estavam irritadiças e com semblante cansado. O eco do falatório animado da galera provocava um looping que fazia as pessoas falarem ainda mais alto. Demoramos para sermos atendidas.
A última batalha: uma cama extra num quarto de hotel
Quando a atendente pediu os documentos da Ana Cláudia, esta aproveitou para perguntar se era possível inserir uma cama extra no quarto. Não sei se pelo barulho, pela impaciência ou pelo “portunhol”, a atendente não entendeu bem. A Ana Cláudia repetiu.
A moça então redarguiu dizendo que o hotel estava muito cheio; que talvez não tivesse cama extra disponível. Salientou que não eram todos os quartos que comportavam outro leito. Notei que eu estava por um triz de ter que espichar o saco de dormir do Manuel lá na rodoviária que, por sinal, era bem longe. Quem dirá o aeroporto!
Num impulso, me aproximei do balcão, baixei os óculos escuros, ensaiei meu melhor sorriso e arranhei um Inglês que fluiu nem sei de que jeito:
– Boa tarde! Eu me chamo Paula e vim de Portugal para o show. Comprei os ingressos tardiamente por causa de imprevistos e acabei não achando hospedagem. Conheci essas meninas incríveis no ônibus a caminho daqui e elas levantaram a hipótese de tentarmos uma cama extra. Eu pagarei por isso. Por favor, averigue junto à governança.
A recepcionista, sem maiores rodeios, se afastou e foi até um telefone que se encontrava mais ao fundo da recepção. Sem delongas, retornou sorridente e disse que a cama extra seria imediatamente preparada.
Peguei a minha carteira e passaporte, agradeci honestamente e perguntei o valor do serviço: “32 euros.” Era um valor justo, assim como o preço que pagamos pelo taxi. Isso me deixou com muito boa impressão. Vale salientar que o fato de eu trabalhar em um hotel também ajudou…
Finalmente, o clima astral
Feliz, agradeci às meninas. Abraçamo-nos e fomos ao encontro do nosso límpido quarto. Elas, mortas por terem vindo lá de Coimbra, se jogaram nas camas alvíssimas. Eu, sistemática, passei longe da minha e coloquei o mochilão impregnado de microrganismos luso tupiniquins num canto longínquo.
Embora fôssemos para o show dali a pouco tempo, pequei meu pijama e fui tomar banho. Apesar de felizes e em clima relax, estávamos pilhadas. Claro que ninguém dormiu. Ficamos tagarelando até o entardecer.
Era chegada a grande hora. No caminho, seguindo o fluxo do mundaréu festeiro, eis o enorme Estádio Olímpico. Uma pá ao celular, outros pulando, outros cantando, um monte sem camisa, uns tomando uns gorós… Bandeiras de países e times de futebol. Entramos na farra e depois nos despedimos, pois elas tinham comprado ingresso nas arquibancadas e eu, lógico, na pista.
Lelena
Ainda bem que as cenas de suspense levaram a um final feliz! Com certeza o show do U2 compensou todos os perrengues que passou!
Verissimo
Gente, cada mergulho era um flash. Nao havia dias prosaicos, de mesmices e sem grandes novidades? Do tipo que antes de ir para cama voce diz a si mesmo: “Mais um dia prosaico gasto no incomensurável da rotina”. Nao sei se meu coracao suportaria tantas emocoes. kkkkkkkkk
Paula Esposito
O trabalho na construção civil é bastante prosaico; a hotelaria, em compensação…
Se a gente pensar bem, a hotelaria, por si só, já dá ensejo para casos pitorescos porque lidamos com pessoas de todos as etnias, faixa etária, classes sociais, perfis culturais e índole, sejam como clientes, trabalhadores ou gestores. Aliás, hotéis são clássicos panos de fundo de filmes, novelas e seriados.
E, olha, eu estou para te dizer que estou enxugando bastante os meus relatos! Tem coisa que não dá para escancarar… rsrs
VERISSIMO COSTA
Don’t spare us the gory details! Usually, they are the most exciting part. HAHAHA