No hotel, meu frio na barriga me impedia de comer o suficiente. Por mais que eu soubesse que meu corpo não estava bem nutrido, minha ansiedade me tirava o apetite. Fui até a varanda. O sol milanês ainda estava alto, porém o brilho incandescente já cedia lugar ao tom dourado e reconfortante de um final de tarde. A frisa estava fresca e aliciante. Cedi aos seus encantos e sentei-me.
Depois de nem sei quanto tempo, retornei ao quarto para me preparar para retornar ao Parque Sempione. No banho, deixei a ducha de água fria pesar sobre meus ombros. Enquanto eu trocava de roupas e enfiava folhas de alface na boca, o refrão you might get lucky now and then sugeria mil planos e desconcertos para o futuro.
Ingresso, documentos, máquina fotográfica, ameixas e água cuidadosamente acondicionados na bolsa. Rumei para a grande noite. Mais por conta da minha ansiedade do que por pressa – pois eu estava bem adiantada em relação ao horário do show – meus passos devoravam o caminho.
No interior do Parque Sempione, o Arena Civica
Devassei o Parque Sempione como se eu fosse assídua do local. Lá estava o Arena Civica. As portas escancaradas dragavam dezenas de pessoas. Mergulhei naquela bomba de vácuo e rapidamente varei no setor das cadeiras. Somente quando me sentei, percebi o quanto eu estava cansada e tensa. O sol estava baixo num típico final de tarde. Atípica era a presença dos pernilongos famintos pelo meu sangue doce. Eu espanava loucamente a inconveniência deles quando uma italiana caridosa me cutucou e ofereceu um repelente.
Cruzei os braços e pernas, refestelei-me na cadeira e olhei para o céu límpido e estrelado. A lua estava tímida e não apareceu. As estrelas, ainda mais cintilantes pela ausência da luz refletida pela lua, faziam um contorno nítido dos símbolos do zodíaco. A ponta do Cruzeiro do Sul estava na direção do castelo. Será que seria uma coincidência ou uma estratégia de orientação quando da construção daquele imenso forte? Na ausência dos radares, os movimentos da natureza cumpriam essa função. Os reflexos prateados me levaram à famosa National cromada, capa do Brothers In Arms.
O Dire Straits
Abri um sorriso bobo ao me lembrar da minha trajetória com o Dire Straits, uma vez que eu nunca havia ligado a mínima para eles. Aliás, nos idos dos anos 80 e 90, eu só os ouvia por acidente quando eu estava no clube, numa festa ou em qualquer lugar onde tivesse um rádio. Mesmo no silêncio do meu lar eu era obrigada a ouvi-los porque meu vizinho abria o porta-malas de um canguiço que tinha um inacreditável equipamento de som com o tal Dire Straits no talo (hábito esse que perdura até hoje).
Não que o som dos caras fosse ruim, mas me entediava o fato de sempre tocar as mesmas músicas, cuja maioria nem o nome eu sabia. Pois é. “Descobri” uma banda legal de forma tão tardia justamente por ouvir, anos a fio, as mesmas coisas. Sendo assim, Dire Straits significava para mim uma banda de curtição, para dançar em festas e se distrair lavando banheiro ou picando legumes. Nunca imaginei que existissem letras inteligentes.
Também havia o problema do inglês que eu nunca tive: quando, no auge da minha adolescência, eu me arriscava a catar palavra por palavra no dicionário de inglês, ávida por saber o que os meus ídolos do Guns n` Roses e Nirvana tinham a me dizer, as decepções eram frequentes. Quase tudo porcaria.
Para quem estava habituada com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gil, Turma do Clube da Esquina, Legião e Cazuza, cujas composições de Português impecável poderiam ser lidas como crônicas literárias ou poesias, eu perderia meu tempo em traduzir as músicas alegrinhas e pop do Dire Straits? Arriscar-me a ler rimas pobres do tipo together com forever?
Ainda bem que sempre há tempo para reverter certos deslizes.