No dia seguinte ao giro pelas cavernas da cidade da Matera, pulei da cama inundada por aquela típica sensação de quando me sinto muito feliz: longevidade. Afinal, após os seis anos que me separaram da Itália, a empatia do Rocco finalmente me levaria a conhecer San Mauro Forte, a vila onde nascera meu bisavô.
Ainda era cedo. No caminho, o frio úmido anestesiava o meu nariz e o vento ensandecido cortava o meu rosto. Eu não conseguia fazer esquentar o sangue porque o calçamento de pedra ainda molhado pelas chuvas me compelia a andar “pisando em ovos”. Desnudou-se no horizonte um pedaço do conjunto de grutas da Reserva da Murgia Materana. Parei para contemplar. Aquele maciço de cálcio me fez rememorar o caminho de Potenza para a Matera.
O vazio demográfico entre Potenza e Matera
Só o fato de o Freccia Rossa (trem de alta velocidade) ter lançado mão de uma van para completar o trajeto de Salerno até a região da Basilicata, já era indicativo de pouca demanda por aquelas paragens. Talvez sazonal. Quando a van quase se esvaziou ao chegarmos em Potenza, já bastou para deduzir que dali para a Matera, a densidade demográfica provavelmente seria bem baixa. Realmente, chamou-me muito a atenção a predominância das inóspitas rochas a reinarem solitárias até que chegássemos ao destino final.
Ali, olhando para aquele imponente maciço bem a minha frente – a mesma forma de relevo que me acompanhou durante a viagem – passou pela minha cabeça o quanto deve ter sido penoso para os nossos antepassados, naquela época, no interior do país, cruzar tamanha imensidão de pedregulhos sem significativa infraestrutura de acesso.
Retomei o caminho. Lá do alto da Via B. Buozzi, avistei o Rocco à porta da igreja San Pietro Caveoso, onde nos conhecemos. Radiante, fui meio que derrapando ladeira abaixo.
Com um sorriso tranquilo em harmonia com seus olhinhos muito azuis, ele me cumprimentou solícito. Disse para eu entrar no carro, um banheirão modernoso, pois ele não poderia se demorar. Ponderou que a distância “oficial” até San Mauro Forte era de 70 km, mas tomaríamos uma estrada vicinal que demandaria 60,8 km. Assenti com a cabeça.
Estrada e paisagem predominantes na Matera
A estrada não era lá um primor: era estreita, um tanto sinuosa e com remendos. Por outro lado, não era esburacada ou mal sinalizada. Como eu havia imaginado, as rochas desertas predominavam na paisagem e até pareciam fazer o tempo transcorrer mais devagar.
A região era tão inóspita que apenas duas cidadezinhas se despontaram ao longo do trajeto: Ferrandina e Stigliano. Provavelmente por razões estratégicas, ambas se localizam no cume das montanhas mais altas. Enfim, era o peso do vazio demográfico desnudado pelas distâncias entre um povoado e outro.
Das curvas da estrada, ao longe, lá no alto, avistei uma espécie de torre. Parecia mesmo uma cena pictórica. Perguntei ao Rocco qual cidade era. Ele sorriu e disse: “É San Mauro!” Eu até pensei em pedir para ele parar o carro para eu tirar uma foto daquela belezura, mas seria muito abuso.
Além do mais, eu ainda teria que chegar dentro do horário de funcionamento do Comune para pegar a certidão do bisa para o processo do meu primo. E, claro, saracotear pela cidade. No sopé da montanha, perguntamos onde era a prefeitura. “Lá em cima, perto da torre.”
Enfim, San Mauro Forte (Matera)
Ladeira acima, em círculos, chegamos lá. O Rocco estacionou o carro no estacionamento da praça adjacente. Eu estava muda, emocionada, com taquicardia. Abri a porta lentamente. Levantei-me lentamente. O céu estava limpo e a luz solar jazia muito dourada por toda a parte. O ar me faltava. Bati a porta e encostei na lataria. A torre – reconheci ser aquela que eu tinha visto na estrada – era bem alta e fazia parte de muito bem conservada arquitetura que não parecia ser a de uma igreja.
Alguns jovens marroquinos jogavam bola na praça e olhavam para mim curiosos. Provavelmente se questionavam sobre quem seria aquela moça com cara de pateta refestelada na lataria do veículo. De esguelha, vi o Rocco a conversar com alguns transeuntes. Caminhei lentamente ao redor da construção e vi um indicativo que a datava do século XI. Tratava-se do auge da Idade Média.
O Rocco então me chamou para que fôssemos à prefeitura. Ao contrário da torre, o prédio do Comune estava desgastado e discreto em meio aos becos que tanto caracterizam os burgos medievais. Adentramos. O interior do prédio, como usualmente acontece, estava limpo e bem estruturado. E quentinho. Acho gozado isso na Itália: é muito comum a gente entrar em prédios que parecem estar caindo aos pedaços e dentro deles sermos surpreendidos com beleza, conforto e infraestrutura high tech.
A prefeitura (comune)
No interior vazio, a sala do Stato Civile era bem no início. Vi um homem de meia idade sentado à mesa. Ele se levantou ao nos ver. Pensei se seria ele o Nicola Savino, o funcionário com o qual troquei e-mails quando requeri a certidão para o meu processo lá nos idos de 2007. É forte o laço que vai se estreitando com os nossos ascendentes à medida que surgem as descobertas ao longo do processo: a gente até decora o nome do moço da prefeitura! “Prego?”, ele disse. Abri o sorriso da princesa da Disney e perguntei se ele era o sr. Nicola. Ele respondeu ter este saído de férias. Murchei no sorriso da cretina.
Então pedi a ele a certidão, coisa que prontamente o fez. Perguntei se ainda existiam “Esposito” na lista dos residentes da cidade. Ele disse que não. Perguntei se ele conhecia o tal Largo San Matteo, lugar no qual, segundo o documento, estaria a casa onde o bisa nasceu. Ele pensou um pouco e disse não saber.
Ajuntou que o plano urbano da cidade mudou muito desde aquelas épocas. Insatisfeita (e chata), perguntei se o catasto (mapas dos antigos planos urbanos da cidade) estava disponível para consulta, mas o setor responsável já estava sem atendimento ao público e que só abriria no dia seguinte.
Saí de lá meio frustrada, embora eu tivesse consciência que eu não conseguiria cavar muita coisa dos meus antepassados numa viagem de bate e volta. O Rocco notou a minha inquietação e me chamou para passearmos pela cidade.
As alterações no plano urbano da cidade
Como era de se esperar, os habitantes são poucos, em sua maioria idosos, pouquíssimos jovens, muitas casas fechadas e algumas já em ruínas. Conforme o funcionário da prefeitura já havia dito, a formatação original da cidade sofreu intervenções: as estreitas vielas, típicas dos burgos medievais, tinham algumas casas de pedra remendadas com reboco, e o piso original, também em pedras, tinham trechos substituídos por materiais aleatórios.
Por outro lado, o aspecto velho e abandonado é minoria. A cidade agrada aos olhos e pulsa culturalmente. Eu reparei em pelo menos quatro bem conservados pontos turísticos com placas informativas. Eu estava indócil de tanta angústia em não poder ficar para conhecer cada cantinho. Retornamos para a praça e paramos para tomar um café. Àquelas alturas, já havíamos nos tornado a atração da cidade. Todos olhavam os dois forasteiros.
No café sempre se encontra as melhores indicações
No bar, uma jovem atendente muito simpática e comunicativa. Expliquei a ela um pouco da minha história e o meu intento ali. Ela, gentil, revirou o google maps para ver se achava o Largo San Matteo. Nada. Segundo a turma que se juntou a nós na mesa, dos idos de 1888 para cá, a cidade já sofrera reformas o suficiente para o referido largo já ter sido suprimido.
Um deles, com feições de cigano e muito solícito, apontou para a igreja adjacente à torre e sugeriu que fôssemos lá. Segundo ele, a paróquia fora construída em anexo ao antigo monastério beneditino que surgiu antes mesmo do vilarejo.
Como à época dos reinos cabia ao poder papal o controle da “estatística” populacional, talvez ali nós tivéssemos maiores chances de ter acesso a informações remotas. Fazia sentido. A igreja estava aberta, mas o padre ou colaboradores não se encontravam. Então tive que me contentar apenas com os informativos históricos localizados próximos às construções.
A História de San Mauro Forte
Segundo os informativos, embora existissem indícios de tumbas do século IV a.C., o atual centro histórico tem origem no século XI, quando uma abadia beneditina se instalou no topo da montanha cujos arredores pertenciam à jurisdição de um bispo e de um barão.
Este, o barão, construiu um palácio e o fortificou erguendo muros e uma torre de três andares – hoje situada no centro da praça principal da cidade (e que eu avistei lá da estrada) – dando à propriedade o contorno de um feudo.
O nome do burgo veio da abadia, dedicada a San Mauro. O adjetivo “forte” foi uma homenagem a uma passagem histórica da cidade em que seus habitantes conseguiram expulsar os invasores da brigada do general espanhol José Borjes, em 1861.
Fui caminhando para uma das beiradas do monastério. Era muito alto. E muito bonito. Remeteu-me um pouco aos meus “mares de morro”. Abri um sorrisão.
O entorno do feudo
De fato, a topografia do lugar cabia à estrutura de um feudo, pois a altura da montanha dava-lhe respaldo estratégico em termos de visibilidade e o entorno era de terras cultiváveis. Além disso, o acesso também gozava de proteção por estar situada a Matera quase que totalmente no interior da península e rodeada por cadeias rochosas.
Apoiei meu abdômen na mureta e deixei meus braços balançarem livres na imensidão daquelas alturas. O vento desestabilizava o meu corpo e já começava a congelar o focinho. Notei o Rocco ali a me esperar. Já era hora. Concentrei-me numa prece e disse um “até breve” ao paesino, pois eu ali, algum dia, retornaria com calma.
Antes de retornarmos, ainda passamos na imobiliária da cidade para agradecermos à moça que nos orientou no fatídico telefonema (o mais massa da minha vida!) que o Rocco tirou da cartola quando nos conhecemos na igreja. O encontro foi divertido e ainda rendeu histórias, cappuccinos e brioches! Depois foi o feliz retorno à cidade da Matera.
Adriana Espósito
Que alegria ao ler sobre a sua viagem lá na Itália. Deliciei-me com suas palavras.
Também sou uma Esposito, neta do Humberto Esposito, um dos 7 filhos, o qual faleceu muito cedo e por isso não tive a oportunidade de conhecê-lo.
Quem me falou sobre você foi o meu irmão Wilson, pois também estamos procurando a história da nossa família. O meu pai ( Ilson Esposito) contava a história de que o seu tio Nicola era seu professor. Lendo todo o seu relato, eu somente confirmei quão corajosos foram os nossos bisavós.Quero muito estreitar os laços e conhecer os nossos parentes.
Wilson
Estou muitíssimo emocionado com tudo que li. Depois de tanto tempo à procura das minhas origens, encontro a resposta aqui. Sou Wilson Esposito Júnior, bisneto de Mauro e Concceta, Bisneto de Humberto Esposito, um dos filhos nascidos no Brasil . Meu país estudou com o Nicola, lembro dele contar!!! Eles moravam em Varre Sai.
Wilson Esposito Júnior
Boa noite! Estou iniciando a procura da cidade aonde nasceu meu bisavô e que feliz coincidência acabei achando todos vcs. Sou Wilson Esposito Júnior bisneto de Mauro e Concceta!!!!! Meu avô é o filho mais novo deles , Humberto Esposito! Espero estreitar relações com vcs!!!!❤️❤️❤️❤️❤️
Adriana Martins Esposito Gordon
Enfim resolvi buscar minhas origens. Pesquisar sobre os poucos relatos que meu falecido pai tinha conhecimento, e minha memória guardou.
Bisavós Mauro Esposito e Concetta Faloti, avós Giuseppe Esposito e Dorvalina, um tio avô chamado Nicola Esposito (professor). Meu pai Ivaci Esposito, que deixou sua cidade de Varre Sai, com tão pouca idade aos 14 anos, rumo ao Rio de Janeiro (capital), para junto de seus familiares em São Cristovão/Barreira do Vasco. Informações soltas, Rua Bela, tio Nicola, Helia…
Pesquisando alguns sites fui encontrando algumas certidões de óbito, a naturalização de Nicolas, e para minha surpresa uma enorme linha de descendentes. Mas como saber mais? Como encontrar alguém vivo?
Encontro esta página ‘Esposito cidadania Italiana’, me vejo deleitando de experiências que não tenho palavras para descrever. Então em meio esta leitura, vejo que a história poderia ser a minha, a da minha família. Ficou eufórica e busco o contato na página para tirar dúvidas, mesmo com vergonha. Que emoção, ao receber uma resposta positiva. Estou com sede de saber mais, conhecer sobre a família de meus bisavós. Muito obrigada por compatilhar sua experiência. Adriana Esposito
Paula Esposito
Oi, Adriana! Que emoção ler as suas palavras. Eu consigo imaginar a alegria que está aí dentro do seu coraçãozinho. No que diz respeito a sua surpresa em ter descoberto uma enorme linha de descendentes, eu também passei por igual sensação quando estive aí no Rio de Janeiro, no ano passado, justamente para expandir a história da nossa família através da ótica de outros familiares que eu não conhecia. Eu já tinha ido a San Mauro Forte em 2016, mas o desenrolar da história aqui no Brasil eu quase nada sabia. Baita contrassenso.
Eu, literalmente, fiz muitas “entrevistas” com a banda carioca da família e tomei até um susto com o quão enorme é a linhagem. Só o meu bisa Nicola teve 10 filhos! O meu trisa (o seu bisa) Mauro veio da Itália com três crianças e depois arrumou mais quatro, dentre eles o seu avô Giuseppe. Numa dessas entrevistas, o tio Giuseppe foi citado. De fato, as narrativas confirmaram que ele veio de Varre-Sai e passou uma temporada na Barreira do Vasco (rua Bela) com o irmão primogênito, o meu bisa Nicola, e a então sobrinha, Hélia.
Já te digo de antemão, que não é vergonha não ter conhecimento da história familiar e, muito menos, tirar dúvidas. Vergonha, receio, distanciamento físico ou psicológico… Esse tipo de coisa gera barreiras inúteis. Eu fui me dar conta disso quando estive lá em San Mauro Forte (Matera) e também em Bondeno (Ferrara). Os percalços pelos quais nossos ascendentes passaram foram muitos. Isso vira uma chave dentro da gente.
Saiba que essa linhas que seus olhos percorreram e que você interpretou como “a história que poderia ser sua ou da sua família” EFETIVAMENTE É a sua história e a da sua família. É a história da NOSSA família. Veja só: você escreveu sobre a ida do seu pai para São Cristóvão. Isso eu não sabia. Cada pequena informação adicionada é uma pedaço importante da história a ser costurada!
Obrigada, também a você, por compartilhar!!
Amanda Fontes
Que maravilhosa a sua coragem e obrigada por nos dar a oportunidade de saber mais sobre o nosso bisa. Obrigada!
Paula Esposito
Prima! É maravilhoso descobrir nossas origens! Dá um orgulho, sabe? É fundamental também perpetuar e celebrar, assim como fizemos quando eu estive aí no RJ. Saudades já! Temos que ir pro rock! Beijo no coração!
Luciano Barros Oliveira
Muito interessante, não imaginei esta verdadeira investigação, haja experiência de vida!
Paula Esposito
Houve pesquisa genealógica que me demandou meses de investigação! Dá trabalho, raiva, às vezes, frustração, mas não há nada mais recompensador do que desembolar o novelo!