O Castelo de Sant Angelo é o camaleão da História de Roma

26 de abril de 2021 Paula Esposito

Embora quase tudo em Roma seja excesso de reviravoltas históricas, Sant Angelo me chamou a atenção porque a edificação em si, como algo unitário, teve diferentes usos ao longo da sua existência.  Cada qual com histórias bem intensas. O Castelo – outrora mausoléu, fortificação, sede de representação papal e cárcere – tem muitas memórias a serem ditas.   

 

Numa das peripécias do processo da minha cidadania italiana, tive que ir ao Consulado Brasileiro em Roma, localizado na aprazível Piazza Navona. Ao ir embora, perdida vielas adentro, acabei chegando ao rio Tibre (Tevere). Dali, ao longe, fui surpreendida ao avistar algo que me remeteu a um majestoso disco voador.

 

Da outra margem do <em>Tevere</em>, surge a imponente fortificação.Castelo Sant Angelo - Tevere (Roma - Itália)

Da outra margem do Tevere, surge a imponente fortificação.

 

Ponte Castelo Sant Angelo - Anjos (Roma - Itália)

Os anjos são esculturas da escola renascentista.

O Mausoléu de Adriano

O que hoje é chamado de Castelo, foi originalmente idealizado pelo imperador Adriano para ser o seu mausoléu e da sua família. A imponência e beleza da sua então arquitetura, sem os baluartes e muralhas que lhe dão o aspecto de fortificação, era comparada à do Colosseo (Coliseu).

O acesso para quem chega do centro histórico é pela magnífica Ponte Sant Angelo, então Ponte Elio, construída pelo próprio imperador em 130 d.C. Somente no sec. XVI, foram colocadas as esculturas de anjos sobre os balaústres.

 

A arquitetura original do mausoléu

Segundo as descrições de Procópio, historiador bizantino do sec. VI, a edificação tinha embasamento quadrado, coberto de mármore. Semelhante ao Túmulo de Cecília Metella (porém em proporções bem maiores), este embasamento sustentava uma grande torre cilíndrica, ornamentada com colunas dóricas, estátuas e espaço para os epitáfios dos futuros sepultamentos. No topo, uma escultura em bronze representava Adriano em uma quadriga.

 

Castelo Sant Angelo - Ponte Elio (Roma - Itália)

Castel Sant Angelo.

 

Só de passar da portaria do Castelo e olhar para cima, já dá gastura o tanto que ele é alto. Parece uma imensidão. Por outro lado, ao adentrar, o frio corredor nos impõe sensação oposta, quase claustrofóbica. Possui rampa helicoidal de 125 metros ainda com o piso original da época de Adriano. As paredes são feitas com travertino, uma rocha branca, porosa, típica das construções romanas. Apesar de parecer hermético, possui canais perfurados no teto que vazam na superfície, de modo a prover ventilação.

 

Castelo Sant Angelo - Rampa Helicoidal (Roma - Itália)

A Rampa Helicoidal de Sant Angelo conecta o térreo ao 2º plano, onde se encontram algumas das prisões construídas posteriormente.

 

O Forte de Sant Angelo

O uso da infraestrutura do mausoléu em fortificação militar se deu em torno de 401 d.C. Foi uma precaução à iminência das invasões bárbaras, sobretudo quando da sua subsequente inclusão nas Muralhas Aurelianas. Foi nessa época que a construção foi circundada de muros e baluartes, de modo a formar o cinturão de defesa da margem ocidental do rio Tibre.

 

Castelo Sant Angelo - Baluarte (Roma - Itália)

Proteção situada à outra margem do Tibre, longe do centro da cidade.

 

E foi justamente com o mantra das aulas de História do ensino fundamental – as invasões bárbaras – que as tumbas, espólios e decorações do mausoléu se desfizeram das mais variadas formas.

Os visigodos, no emblemático Saque de Roma por Alarico em 410 d.C., espalharam as cinzas dos mortos ao depredar as urnas e túmulos em busca de bens valiosos. Em 537, quando Roma foi sitiada pelos godos, o meio usado como defesa foi usar as estátuas de pedra e o bronze decorativo como artilharia contra os invasores.

 

Castelo Sant Angelo - Artilharia em Travertino (Roma - Itália)

Projéteis feitos de travertino.

 

Ainda sobre os espólios, existe outro importante viés apontado pelos registros do arquiteto Giorgio Vassari (século XVI):

 

Sant Angelo – assim como os fóruns romanos, Coliseu e o Panteão – teve seus mármores e colunas de pedra retirados para embelezar ainda mais a já opulenta Basílica de São Pedro.”

 

O Castelo de Sant Angelo

A transformação em castelo veio na sequência das invasões bárbaras, em torno do século X, quando o forte cai nas mãos de poderosas famílias romanas, como os Crescenzi. Finalmente, em 1277, foi incorporado ao poder eclesiástico pelo então papa Nicolau III.

Este, receoso da atmosfera instável provocada pelas constantes invasões, mandou construir o Passetto di Borgo – uma passarela sobre um muro que liga o castelo à Basílica de São Pedro – para assegurar a fortaleza como refúgio de segurança em caso de urgência. Desde então, o castelo se manteve em poder da igreja que o utilizou também como sede de representação papal, arquivo, prisão e local de torturas.

 

Castelo Sant Angelo - Passetto di Borgo (Roma - Itália)

Como toda aventura que se preza, é claro que o Passetto tinha acesso subterrâneo.

 

O castelo como residência papal

Em 1527, Roma foi alvo de outro saque, compelindo o Papa Clemente VII a se refugiar no castelo. Ali, dos “corredores”, se diz que o Papa assistiu ao desenrolar de todo tipo de atrocidade. Considerando então a hipótese de cercos futuros, no 4º plano do castelo, ele então mandou construir um “apartamento” confortável (e opulento) para que o clero fosse melhor acolhido.

A residência papal do interior do castelo nos remete aos cômodos correlatos dos museus do Vaticano. O espaço é decorado com afrescos de artistas renomados como Giulio Romano e Perin del Vaga, ambos da escola de Rafael. Fotografias e filmagens não são permitidas, mas vale dizer que a usura da Igreja Católica – mesmo com a cidade ladeira abaixo – foi transposta para Sant Angelo.

 

Castelo Sant Angelo - Residência Papal (Roma - Itália)

Vista que testemunhou a beleza e horrores da Cittá Eterna.

 

Castelo Sant Angelo - Arcanjo Miguel de Rafael de Montelupo (Roma - Itália)

O Arcanjo Miguel esculpido em mármore por Raffaello da Montelupo, aprendiz de Michelangelo.

A lenda da graça celeste

A denominação Sant Angelo, no entanto, tem origem em uma lenda mais antiga, do ano 590 d.C.

Reza a tradição que o Papa Gregório I, ao implorar à Virgem Maria o fim da peste que assolava a cidade, viu aparecer um anjo no céu que se pôs no topo do castelo e colocou a sua espada de volta na bainha. Este seria um sinal da graça concedida.

Como recordação do evento, Leão X construiu uma capela em honra ao anjo e, em 1536, encomendou uma estátua ao escultor Rafael de Montelupo, hoje localizada no 3º plano.

 

A Prisão de Sant Angelo 

No século XIII, quando o castelo foi incorporado ao Vaticano, foi no inóspito trajeto da rampa helicoidal que as celas e solitárias foram distribuídas para receber os condenados pelo poder papal.

À semelhança do Carcere Mamertino, alguns dos acessos ao cárcere era através de um alçapão por onde o prisioneiro era jogado. As condições das prisões usualmente eram desumanas a ponto de serem projetadas para que o prisioneiro ficasse em uma posição que não o permitia ficar totalmente de pé ou sentado. É de sangrar o coração.

Castelo Sant Angelo - Sala Sepulcral (Roma - Itália)

A Sala Sepulcral era uma espécie de “Sala da Justiça”, onde o prisioneiros eram julgados e condenados.

Aos condenados de “menor quilate”, bem podemos intuir suas condições de lúgubre atmosfera e destino final.  Aos prisioneiros mais ilustres – Benvenuto Cellini, Giordano Bruno, Arnaldo de Brescia e o mágico (dito “charlatão”) Cagliostro – a sorte às vezes jogava a favor.

O primeiro, renomado ourives e escultor, acusado de roubar joias do papa, foi confinado em Sant Angelo, de onde, durante uma festa, conseguiu escapar emendando lençóis para improvisar uma corda.

No entanto, a emenda soltou, ele caiu, quebrou a perna, não conseguiu ir muito longe e foi recapturado. Por sorte (ou por ser exímio em suas obras), a corte francesa intercedeu e conseguiu a sua liberação.

 

A Santa Inquisição

O filósofo e frade dominicano Giordano Bruno entrou em choque com dogmas sensíveis da igreja católica por causa dos seus estudos sobre a cosmologia (extensão dos conceitos de Copérnico), reencarnação e transmutação da alma. Após ter passado seis anos em Sant Angelo, foi considerado herege. Por fim, foi condenado à fogueira pela Inquisição.

O local onde ele foi queimado – Campo de´ Fiori, ano 1.600, Roma – hoje tem uma estátua em sua homenagem e é uma aprazível praça com bares, trattorias e uma feirinha matinal.

 

Castelo Sant Angelo - Campo dei Fiori (Roma - Itália)

Por determinação da Inquisição, o Campo de´ Fiori foi o local de execução do filósofo Giordano Bruno por heresia.

 

O Arcanjo Miguel

Finalmente, no 5º plano do castelo, ficamos honestamente confusos ao escolher entre admirar o panorama do centro da cidade, o panorama do Vaticano ou o gracioso Arcanjo Miguel talhado em bronze pelo escultor flamenco Peter Anton von Verschaffelt, em 1753.

Eu, particularmente, fiquei um tempão espojada sobre a mureta refletindo sobre quanta história e almas penadas estavam impregnadas naquele colosso que parecia não ter fim. De onde eu estava, o passetto conduziu meu olhar até a Cúpula de São Pedro.

 

Castelo Sant Angelo - Vaticano (Roma - Itália)

A panorâmica de qualquer mirante de Roma é sempre de tirar o fôlego!

 

Castelo Sant Angelo - Arcanjo Miguel de Peter Anton von Verschaffelt (Roma - Itália)

Bênçãos propagadas do topo de Sant Angelo.

Fui caminhando devagar com as mãos cruzadas nas costas. Apesar de o Miguel ser um arcanjo espadachim, coloquei-me de frente a ele para dedicar uma prece ante a tanta confusão.

Observando seus traços delicados, abri um sorriso gozado ao questioná-lo se Roma ainda corre um risco de um novo saque.

Franzi o cenho e o interpelei sobre a possibilidade de ele desembainhar a espada caso algum milionário sheik árabe viesse raptá-lo para derreter seu bronze em favor da construção de algum templo gigantesco do islã.

Rindo dos meus próprios pensamentos, refestelei-me tranquila posicionada de frente à Citta Eterna.

 

Castelo Sant Angelo - Mirante Roma (Roma - Itália)

Roma: meu lar.

Comentários (2)

  1. Lelena

    Sensascional! Adorei conhecer a história do Castelo de Sant Ângelo através de sua narrativa.

  2. Dante

    É difícil comentar o papel (ou o papelão) que a igreja católica desempenhou na história, até porque é necessário contextualizar. By the way, até hoje os olhos são fechados para muita coisa errada, mas, mas, mas…Na sua reencarnação, daqui a alguns séculos, você fará a leitura, semelhantemente a que fez agora sobre o Castelo Sant Angelo.

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