A informação do Rocco fazia sentido. De fato, as cidades da província da Matera são muito espaçadas. Na falta de hospedagem e ônibus, não teria como eu caminhar os inóspitos 26 km entre a cidade onde nasceu meu bisavô e a cidade onde havia hospedagem. Esse perrengue da atualidade me levou a refletir sobre como seria essa logística no final do século XIX.
Seus compadecidos olhinhos azuis esquadrinhavam o meu semblante derrubado por essa notícia. Eu senti que o mundo tinha caído sobre a minha cabeça. Parecia que eu teria que postergar novamente o sonho de conhecer a terra do meu bisavô, pois eu teria pouco tempo ali. O Rocco, ao ler meus pensamentos, começou a revolver uma gaveta que parecia não ter fundos. Dali ele descolou um guia telefônico. Ao virar as páginas freneticamente, ele balbuciava “San Mauro, San Mauro…”.
O telefonema para San Mauro Forte
Bruscamente, ele tirou o telefone do gancho e fez uma ligação. Ainda com cara de tacho, eu abri os braços e exclamei: “Rocco, o que o sr. está fazendo?!” Ele sorria tranquilo quando alguém finalmente respondeu ao chamado:
“Boa noite! Meu nome é Rocco Toscano e falo aqui da Matera. Desculpa te incomodar no seu trabalho. A sra. nem me conhece, mas eu preciso de uma ajudinha. Tenho aqui bem na minha frente uma menina descendente de italianos que veio do Brasil para conhecer San Mauro Forte, terra do seu bisavô.
No entanto, ela está com dificuldades em relação aos meios de transporte para se chegar até aí e também encontrar hospedagem. Ela reservou um hotel em Stigliano pensando ser próximo daí, mas averiguei num mapa e disse a ela que é longe. Por favor, a sra. poderia nos ajudar com alguma informação ou opinião?”
Eu assistia à cena completamente boquiaberta. O meu anseio de nem sei quanto tempo, que vinha sendo preterido por inúmeros percalços, parecia estar prestes a ter o seu destino selado pela boa vontade de duas pessoas estranhas. O papo desenrolava solto, dotado de todos os pormenores.
Após mais de meia hora ao telefone, o Rocco finalmente o desligou e mandou-me sentar numa cadeira próxima. Mecanicamente, com o queixo despencado e a boca seca, obedeci ao seu comando. Sorrindo, ele me disse que viu no catálogo o número de uma agência imobiliária localizada em San Mauro. Isso lhe pareceu ser uma boa opção para tentar a sorte porque provavelmente os funcionários saberiam sobre os tipos e destinações dos imóveis da cidade. Talvez soubessem algo sobre os moradores de lá.
Assenti com cabeça, pois o Rocco realmente teve muita presença de espírito e muita cara de pau ao fazer isso. Ele disse ter confirmado com a tal moça que San Mauro Forte realmente não era próximo a Stigliano e que lá não havia hospedagens; nem um quartinho para alugar. Foi confirmado também que o único ônibus do dia partia da cidade às 5h da manhã.
Após breve pausa, ponderou que a moça também afirmou não haver nenhum dos sobrenomes da minha linhagem familiar remanescente na cidade, caso fosse minha vontade encontrar algum parente. Após outra pausa, o Rocco finalmente me perguntou o que eu pretendia fazer diante dessas informações.
A Imigração italiana nos Estados Unidos e Venezuela
Encolhi os ombros e resmunguei que eu não tinha o que fazer frente a um lugar intangível, afinal, eu não tinha carteira de motorista para alugar um carro. Alugar uma bicicleta num lugar tão inóspito não parecia muito auspicioso, até porque era época de chuva. Ao notar que eu estava quase mal humorada e que meus olhos estavam rasos de lágrimas, o Rocco sentou-se diante de mim:
– Eu tenho uma irmã que mora em Caracas, na Venezuela. Faz tempo que temos receio de nos ver devido às guerrilhas. As coisas por lá andam cada vez pior. O nacionalismo exacerbado põe em risco também os imigrantes, por mais que tenha tempo que a minha irmã viva por lá.
Compadecida da situação, expliquei a ele que passei por situações correlatas em Portugal, onde tomei tombo de patrão, passei por exploração laboral e perseguição pela polícia de fronteira; fora as formas de preconceito. Acrescentei que a cautela dos parentes dele era mesmo o melhor caminho, pois qualquer movimento induzido pela paixão ou medo se torna eloquente quando se está sendo caçado. Escapei de boas por ter sangue frio.
Com o olhar vagueando, como se buscasse algo da memória, ele se lembrou dos primos parceiros da infância que haviam emigrado para os Estados Unidos – especificamente Nova York – e dos quais não teve mais notícias. De fato, grande parte de italianos sulistas construíram a história dessa cidade.
O outro viés da imigração
O emplastro Brás Cubas me jogou vácuo adentro rumo ao outro lado da imigração italiana: o lado de quem permanece no país. Muito se fala da situação miserável dos que emigraram, mas pouco se diz da dor dos remanescentes em conviver com a incerteza quanto ao retorno dos seus. Quiçá quanto ao recebimento de qualquer notícia deles.
Era essa a situação do Rocco. Vivendo na Matera, o historicamente inóspito e pobre sul da Itália, ele viu sua família se desmantelar em função das adversidades. Sua sensação de impotência e decepção provavelmente era semelhante ao que eu sentia. Na tentativa de apartar sua tristeza, sugeri que ele procurasse seus parentes pelo FamilySearch, um site de genealogia.
Seus olhos me fitaram brilhando. Expliquei-lhe então algumas particularidades. Ele correu para a infindável gaveta, pegou um papelzinho e pediu para que eu anotasse o nome do site. Assim o fiz e devolvi a ele satisfatoriamente.
Empatia
Ele me perguntou até quando eu ficaria na Matera. Respondi que por mais três dias. Segurando as minhas mãos, ele então disse que poderia, na quinta-feira de manhã, me dar uma carona até San Mauro Forte. Senti minha pupila dilatar e meu rosto queimar. Num reflexo, baixei o olhar.
Ele me deu um abraço forte e sorriu: “Você veio aqui para fazer uma prece para o seu anjinho da guarda, certo?!”. “Acho que já fui atendida.”, balbuciei com a voz embargada. E novamente ele saiu me arrastando pela igreja até chegarmos à última capelinha da navata esquerda, onde havia uma pia para batizados e alguns afrescos. Apontando para dois deles, o Rocco finalmente disse:
“Estes são San Francesco e San Domenico. Esta é a capela onde faço minhas preces. É aqui que te deixo para conversar com Deus.”.
Retirou-se. Fixei-lhe o olhar até que a sua silhueta desaparecesse na penumbra. Prostrei-me no altar, com os braços pendurados no parapeito, deixando que as minhas lágrimas orassem por mim. Nem sei por quanto tempo.
Jésus
Liiinnnnddooooo; confesso que fui às lágrimas por diversas vezes, ao imaginá-la em terras tão distantes, tão longe de nós, sozinha, recebendo as palavras de “um santo”; se a fizeram descer lágrimas, me fizeram também. Que orgulho!!!!!!!