Cidadania Italiana: a desonesta negativa do pedido da residência (IV)

16 de novembro de 2020 Paula Esposito

Faltavam apenas dois dias para completar o tempo hábil da fiscalização do vigile urbano (45 dias). Como a visita a nossa casa já havia sido feita, o próprio guarda municipal nos orientou a esperar o retorno da prefeitura por via postal.

 

Sentados tranquilos à mesa do almoço aguardando a conclusão da transferência da residência para dar prosseguimento à cidadania italiana, vimos chegar o carteiro. Vim caminhando tranquila da varanda já abrindo o envelope. O texto era longo, coisa que já significava mal presságio, pois os comunicados de conclusões de tramitações burocráticas italianas são muito objetivos. Bingo. Meus olhos devassavam o inacreditável vazio das justificativas ali alegadas:

 

“(…) após avaliações efetuadas, sendo essas com êxito negativo na data 25 de maio de 2018, a Polícia Municipal local requereu ulteriores investigações para verificação do endereço como efetivo local de residência.”

 

Cidadania Italiana - Negativa do Pedido de Residência na Itália

 

O golpe para nos atravancar a cidadania italiana

A supracitada data caiu feito uma bigorna na minha cabeça; o suficiente para eu interromper o restante da leitura e dirigir meu olhar para a mesa do almoço onde todos me fitavam muito assombrados. Eu precisava ter a certeza de que acabáramos de ser vítima de um golpe, então perguntei: “O vigile veio aqui no dia 1º de junho, certo?” Dentre suspiros e inquietações, todos confirmaram. Fiz um gesto de silêncio para que eu pudesse terminar de ler aquela afronta.

Segundo o comunicado, teríamos dez dias para contra-argumentar o ocorrido e pedir a reconsideração do pedido da residência anteriormente feito. Reconsideração esta que não necessariamente seria acatada pelo Anagrafe. Pior (este foi o derradeiro soco no estômago), o cronômetro seria zerado: um novo prazo de 45 dias seria reiniciado. 

Encostei-me na bancada da pia da cozinha, cruzei minhas mãos – numa delas, o comunicado – pouco abaixo da zona da cintura e deixei meu olhar vaguear por breves instantes. Diante de mim, aquela família me fitava de modo a cortar o coração. Expliquei-lhes o conteúdo do comunicado. A Mariana imediatamente revolveu a inconsistência da data. E ajuntou a malícia da prefeitura em esperar transcorrer 43 dias para enviar a negativa da fiscalização que ocorrera há 20 dias.

Ela estava coberta de razão. Fixei nela meu olhar e assenti com a cabeça. Senti meu olhar novamente vaguear em busca de algo e me lembrei que no dia que o vigile passou, ele também fiscalizou a nossa vizinha, a sra. Rosa. Já pensando num modo de tentar reverter a situação, atravessei a cozinha rumo à porta da varanda e disse ao pessoal que iria dar um pulo na casa dela para confirmar se o vigile, de fato, veio em 1º de junho. 

 

A confirmação da vizinha

“Venha para a mesa e termine seu almoço!”, disse a sr. Filomena. Devolvi um sorriso e fiz sinal negativo com a cabeça. O sr. Corando então arriscou a conclusão quase óbvia: “Com uma notícia dessa, qualquer um perde a fome, né…”

 – Com uma repulsa tão infundada e gratuita, qualquer um perde a alma, sr. Corando.

Fui até a casa da sra. Rosa. Displicente, sem dar maiores explicações, perguntei que dia o vigile nos visitou. Ela, solícita, consultou alguns apontamentos na tela do celular e confirmou ter sido a visita feita no dia 1º de junho. Voltei para casa. O sr. Montana me perguntou o que eu iria fazer. Olhei para o relógio e me certifiquei que a prefeitura já estava fechada para o público.

Respondi honestamente que eu precisava entender o que estava acontecendo, pois todos os passos percorridos até ali estavam corretos e protocolados. O único porém apontado no comunicado era a data de uma visita que nenhum de nós reconhecia.

 

Conjecturas

A prefeitura poderia até alegar a nossa ausência, mas seria uma manobra arriscada. Primeiro, porque éramos um grupo de cinco pessoas num lugar em que não havia muito a se fazer. Segundo, porque éramos cientes de estarmos no meio de um processo que era do nosso interesse. Sendo assim, não seria inteligente da nossa parte sair para fazer um tour pelos Alpes. Também poderiam apelar para subterfúgios ridículos, como o não funcionamento do interfone. No entanto, isso também seria questionável porque a visita do dia 1º de junho – ou seja, seis dias depois do suposto 25 de maio – o vigile foi atendido justamente por este meio.

 

Opções

O sr. Montana, inteligente, ponderou que isso poderia recair na situação de “é a palavra de um contra a palavra do outro.” Concordei plenamente e acrescentei que existem meios administrativos e judiciais para resolver esse tipo de pendenga:

“Vocês devem ter notado que, quando o vigile aqui esteve, ele estava com uma prancheta com os vossos dados e ali escrevia algo que ele julgava pertinente. Pois bem. Todos os procedimentos são registrados, ainda que seja para o controle interno administrativo. Em se tratando o processo da residência como algo personalíssimo e tendo vocês o codice fiscale (CPF italiano) e demais documentos correlatos, o acesso a tais protocolos pode ser requerido.” 

O sr. Montana objetou dizendo que isso poderia dar ensejo para clima hostil. Embora a colocação dele fosse compreensível, a minha concordância era parcial: ponderei que o “clima” pode tomar conotação hostil ou profissional dependendo do modo como o argumento é abordado. Ademais, a minha aposta estava mais para “jogo de empurra”, pois o responsável técnico por pedir a fiscalização era o Anagrafe, mas o responsável técnico em executá-la era a polícia local. Daí, para um jogar nas costas do outro seria fato consumado.

Eu mesma interrompi minhas deduções e refleti não ser de muita valia fazer conjecturas. Afinal, para uma situação tão lisérgica, muita coisa iria surgir das linhas e entrelinhas da nossa próxima ida ao Comune.

 

A cidadania italiana se torna um castelo de areia 

Com eloquente tristeza, a d. Filomena então despejou em forma de decepção as represadas doces lembranças dos causos de família:

– Eles não nos querem aqui! Desde a primeira vez que pisamos naquela prefeitura, eu senti que aquele Alessandro não foi com a nossa cara! Eu imaginei que a nossa vinda à terra do vovô seria um bonito resgate da nossa história. Mas tudo que estamos vivendo é tensão e repulsa. Eu já nem sinto mais vontade de visitar a cidade onde ele nasceu!

Irrompeu-se o silêncio. O filme do meu processo da cidadania italiana – este sim, eivado de motivos burocráticos para ser indeferido em todos os âmbitos – desnudou-se quadro a quadro na minha memória. Assessorias anteriores, buscas de documentos, dentre uma scaramuccia e outra, todas transcorreram no limite do ponderável.

A Itália é um país MUITO burocrático. Tropeços em minúcias inerentes ao processo da cidadania acontecem; assim como também acontece o desconhecimento dessas mesmas minúcias por parte de muitos funcionários das prefeituras. Isso não é fato raro. Infelizmente, eu não consegui cavar nenhum cantinho de lei que pudesse justificar o ocorrido. A sra. Filomena parecia estar com a razão. No fundo, as percepções dela foram compartilhadas por todos nós. 

Por fim, arrematei: 

– Até o presente momento, apesar de eu ter consciência que a Itália não é exemplo de organização, agilidade e idoneidade, não tenho nada a reclamar da minha história aqui. Muito pelo contrário. Até ontem, por onde passei, sempre nutri profunda gratidão aos funcionários públicos, justamente por eles terem tido temperança ao lidar com os percalços que surgiram. Mas hoje, neste particular, estou com a senhora. Inclusive, na condição de italiana, eu me sinto envergonhada e enojada.

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