Cidadania Italiana: o conceito de residência na Itália segundo o comandante da polícia local (VI)

30 de novembro de 2020 Paula Esposito

Em casa, o sr. Elio tentava acalmar os ânimos dos requerentes. Em vão, pois ele mesmo não conseguia disfarçar a tensão em relação ao descaso e arbitrariedade com que o funcionário da prefeitura tinha tratado a negativa da residência para o processo da cidadania italiana.

 

Parecíamos estar num funeral, pois o clima estava muito pesado. Já sem muito o que dizer, ele se despediu e foi embora. Sentados à mesa do jantar – sem o jantar – todos me olhavam em eloquente silêncio. Tive a ligeira sensação da realização de alguma reunião paralela à minha existência.

 

Tensão ante ao possível fracasso da cidadania italiana

O sr. Montana, em notável esforço para manter amigável o tom de voz, tomou a dianteira e disse ser ele o dono de uma empresa com mais de 40 funcionários sob a sua batuta; por isso, ele não tinha tempo para participar de brincadeiras. Franzi o cenho, fitei-o na tentativa de fazê-lo refletir sobre o que ele estava me dizendo e permaneci em silêncio.

Ante a minha postura, ele ficou muito vermelho e começou a despejar inconsistências em crescentes decibéis. Por respeito, permaneci quieta, pois o estresse dele era totalmente compreensível. Percebendo, porém, que as têmporas do sr. Montana já estavam ficando salientes, achei auspicioso dar um basta porque aquilo culminaria em estéril discussão. Partindo da premissa que a melhor forma de podar monólogos passionais é dar ao seu interlocutor aquilo que ele quer ouvir, disse-lhe:

– Eu endosso tudo que foi dito. Agora vos peço licença porque eu preciso desacelerar.    

Retirei-me. O único objetivo da minha presença ali era o de prestar serviços. Resolver problemas. Eu precisava de um mínimo de saúde física e mental para raciocinar. Os desolados olhares à mesa e a ira do sr. Montana só fizeram reiterar o fato de que se eu não interviesse, aquela família perderia o processo. Afinal, o sr. Elio alegou não ser boa coisa arrumar confusão com o Comune, porém não sugeriu qualquer solução.

 

Foco

Fiz a minha prece noturna e amanheci agradecendo aos céus por abrir os olhos ante a tão abençoada natureza. Era muito cedo. Todos estavam dormindo. Troquei de roupas e desci a ladeira para comer um cornetto e um vero cappuccino num boteco em frente à prefeitura.

 

 

Quando eu estava chegando, o Pablo – o policial alto, bonito e cínico – me cumprimentou. Achei interessante o fato de, dessa vez, ele ter me enxergado. Refletindo sobre uma verdade universal – a de que grandes problemas não são resolvidos com cachorro pequeno – abri meu melhor sorriso, disse-lhe “buongiorno” e passei reto.     

Enquanto eu degustava tranquila meu café da manhã, a rádio me presenteou com a sugestiva Closing Time. Abri um sorriso brejeiro, paguei a conta e atravessei a rua rumo ao Comune. Passei batido pelo Anagrafe e subi as escadas. A secretária do departamento da polícia local prontamente me atendeu quando eu pedi para falar como o comandante.  

Ela me conduziu para o interior do departamento onde havia um grande balcão e, ao fundo, uma pequena sala. Havia dois policiais, um do lado de dentro e outro do lado de fora do balcão. A secretária me apresentou o que estava do lado de fora como o comandante da repartição. Tratava-se de um homem adentrando em idade madura, de semblante tranquilo, queixo furado, muito bonito, porém baixo. 

 

O Comandante da Polícia Municipal

Ele, solícito e de belo sorriso, estendeu a mão e se apresentou: “Comandante Giordano. Em que posso lhe ser útil?” Objetiva, respondi que gostaria de me informar sobre os critérios da polícia municipal para concessão da residência. Sem qualquer rodeio, ele me fez acompanhá-lo até a sala dele, ofereceu-me assento e também se sentou. Igualmente sem rodeios, eu me apresentei, introduzi a problemática da residência da família em questão e perguntei se ele já havia conhecimento do fato.

 

O interrogatório velado

O Comandante assentiu com a cabeça, abriu um sorriso e disse que o meu italiano era muito acurado. Agradeci e esclareci que eu havia estudado a língua e cultura italiana por quatro anos na época da universidade. Ele ergueu as sobrancelhas e perguntou se havia algum motivo especial para isso. Respondi que era por causa da minha ascendência italiana. 

Estava claro para mim que o sr. Comandante estava tentando saber quem eu era e, principalmente, qual era a minha ligação com a família que estava ali a fazer o processo da cidadania. Para lhe facilitar o trabalho, tirei a minha identidade da mochila e mostrei para ele. “Ah, você é italiana?” Confirmei com a cabeça. Ele examinou a cédula e perguntou: “Vejo que a sua residência é em Roma. Onde fica essa via Giulio Aristide Sartorio?” “Zona Garbatella.”, respondi prontamente. 

Ele me fitou e, displicente, disse ter feito alistamento militar em Roma. Disse que ele foi muito feliz lá. Também displicente, respondi num tom meio zoado (e honesto): “Roma é uma zona, mas é o melhor lugar do mundo!” Ele, então, finalmente pôs fim ao gato e rato e perguntou o que todos na prefeitura queriam saber: “Você ainda habita lá?”. Por fim, esclareci: “Sim, eu estou aqui acompanhando essa família pelo fato de eles não terem destreza com a língua italiana. Nós nos conhecemos desde a minha infância. Quando o processo deles for concluído, eu retornarei a Roma.”

O Comandante fez um gesto de entendimento com a cabeça e retornou à questão da residência. Novamente, com toda a paciência e riqueza de detalhes, narrei os percalços com o processo da residência, desde a fiscalização feita pela polícia até a duvidosa interpretação do Anagrafe. Posto isso, perguntei objetivamente sobre quais eram os critérios para concessão da residência. 

 

O conceito de residência segundo o comandante da polícia local

De modo bastante fluido – fato que me chamou bastante a atenção – o comandante descartou justamente o embasamento técnico do conceito e esclareceu que:

 

“O conceito de residência não se trata de “arresto familiare” (prisão domiciliar) ou algo preso no limite temporal de 45 dias, mas de inserção na sociedade.”

 

Concordei honestamente com o viés apontado por ele e, aproveitando o ensejo, teci rapidamente a minha palestrinha e já emendei à queima-roupa:

– Sr. Comandante, desde o dia que aqui chegamos, estamos sempre em circulação, seja nos supermercados, na missa, na biblioteca ou sentados à praça. Fomos até à Festa Nacional dos Alpinos. Nem carro nós temos para sermos acusados pelo policial Pablo de passarmos breve temporada aqui para aproveitar o grosso do tempo no rock de Milão. Afinal, se estamos adaptados à rotina da cidade, por que tivemos a negativa da residência se, em um suposto controle, não havia ninguém em casa e na semana seguinte o vigile urbano encontrou todos lá?

Ele basicamente repetiu o mesmo discurso. Acrescentou que não há qualquer problema de as pessoas se ausentarem da cidade, citando as idas e vindas de cidades diferentes por motivo de trabalho. Disse também que temos o direito à escolha de horários de visita do vigile justamente em função da vida que segue lá fora. Sendo assim, meus pensamentos chegaram ao óbvio:  

– Sim, sr. Comandante. Deslocamentos de pessoas que trabalham ou estudam em uma cidade, mas moram em outra é um fenômeno mundial super comum. No Brasil, o denominamos migração pendular. Eu citei este raso argumento do policial Pablo – uma autoridade – para finalmente te expor que os critérios da concessão da residência estão muito mal disfarçados de subjetiva constatação pessoal.  

 

Afinal, a residência é um conceito subjetivo

Ele, um tanto sem graça, balançou a cabeça entre um “sim” e um “não” e admitiu que o conceito de “inserção na sociedade” passa sim por certa subjetividade. Continuei:

– Justamente. A interpretação do Direito pode dar ensejo para um viés oblíquo ou mesmo desonesto. Posso ver as anotações do policial que fez as fiscalizações? Ou, se não posso ter acesso por se tratar de arquivo interno e sigiloso, posso ao menos conversar diretamente com o policial?   

Após breve silêncio, o sr. Comandante ponderou que o acesso a qualquer um dos meios não seria de muita valia porque a decisão final é sempre do chefe do Anagrafe. As entrelinhas da resposta dele foram eloquentes. Então estendi a minha mão para ele e o agradeci por ter sido ele a única autoridade sincera que eu conhecera até então.   

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