Na língua portuguesa não há sinônimos absolutos. As esquisitices que marcaram o processo da minha cidadania italiana não poderiam ser meramente classificadas como “incomuns” ou “anormais”. Para uma tramitação que aconteceu de forma quase lisérgica, tais qualificações não soariam romanas. Roma sendo Roma, a dinâmica é solta, iconoclasta. Roma, para mim, sempre levitou numa atmosfera insólita.
Sagres (Portugal): o tênue caminho para a cidadania italiana
Agosto de 2011. Em um ponto de ônibus debaixo do tórrido sol de verão, eu e uma considerável fila de turistas europeus esperávamos o último autocarro das imponentes falésias de Sagres para Lagos, em Portugal.
Chegada a minha vez de embarcar, quando eu estava com uma perna no ar para subir no ônibus, senti uma forte trombada no meu mochilão bem pesado. Isso me fez perder o equilíbrio e pisar em falso, de modo a raspar a minha perna nos degraus e quase me fazer cair. Ao olhar para trás, vi que havia um casal de idosos muito cansados e suados. A senhora me pediu desculpas pelo ocorrido.
Imediatamente reconheci a língua italiana. E imediatamente – em língua italiana – dei a precedência para que eles embarcassem na minha frente. Subi logo em seguida e sentei-me numa poltrona qualquer. Minutos depois, a senhora veio até mim e perguntou se eu estava bem, pois ela viu que eu tinha me arranhado nos degraus. Abri um sorrisão, falei que estava tudo bem e que eu estava me sentindo muito feliz por novamente poder dialogar com um italiano.
Da trombada surgiu um e-mail
Ela – Giulia – sorriu e disse ter se surpreendido com o fato de uma estrangeira falar a língua italiana, algo não muito comum atualmente. Expliquei que eu havia descendência e tinha planos de ter reconhecida a minha cidadania. Conversamos só mais um pouco, pois eles desceriam ali perto. Daí trocamos nossos e-mails e nos despedimos.
Pouco mais de dois meses depois, finalmente concluí que não seria possível usar Portugal como meio de realizar meus planos. O mais plausível seria eu retornar ao Brasil. No entanto, antes de qualquer manobra neste sentido, arrisquei contato com a Giulia para saber de algum meio razoável de eu ir para a Itália e me manter lá.
Ela prontamente disse ser o esposo dono de um escritório de prestação de serviço em Roma e me chamou para trabalhar lá. Pois é. Novamente, será que as coisas feitas dessa forma podem ter um bom desfecho?
Ilegalidade na zona de livre circulação da União Europeia
Por ter pegado voo doméstico de Portugal para Roma após um ano vivendo ilegalmente em terras lusas, óbvio que a minha condição irregular se arrastaria para onde quer que eu fosse dentro da União Europeia. Eu tinha plena consciência disso. E eu tinha pleno conhecimento de que só seria possível requerer a minha cidadania se eu estivesse legalmente estabelecida na Itália. Porém, eu não tinha como pagar voo de ida e volta do Brasil para fazer “zerar” o meu passaporte e entrar legalmente no Espaço Schengen.
Por outro lado, eu também sabia que os meios de se legalizar variam conforme as leis de cada país. Era o caso de eu me certificar se, assim como em Portugal, a Itália também facultava aos imigrantes ilegais a regularização através de contrato de trabalho. Em caso afirmativo, seria o caso de averiguar se isso daria ensejo para eu entrar com o pedido de reconhecimento da cidadania italiana. Afinal, são dois vieses distintos.
A residência do casal era em uma área de Roma chamado infernetto (sim, “inferninho”). Eu deveria me dirigir à circunscrição da “delegacia” de Ostia (Commissariato di Polizia) – departamento do setor de segurança pública responsável pelas questões gerais vinculadas à imigração – para resolver as minhas pendências.
Enfiei a pastinha com os documentos comprobatórios da minha descendência debaixo do braço e resolvi ir até lá.
Delegacia de Ostia (Roma / Itália)
Fui diretamente ao balcão de atendimento onde uma jovem e sorridente funcionária se prontificou: “Prego?” Coloquei meus documentos e passaporte sobre o balcão e a fitei:
– Meu nome é Paula Esposito. Sou brasileira, ítalo descendente. Eis a documentação. Eu cheguei anteontem de Portugal, onde lá permaneci por mais de um ano. Eis o meu passaporte. Como estou em situação de ilegalidade, vim procurar saber se existe algum meio de eu me regularizar para entrar com o pedido de reconhecimento da cidadania italiana jure sanguinis sem eu precisar retornar ao Brasil.
À medida que eu falava, eu via as pupilas da funcionária se dilatarem e seu rosto mudar de cor. Ela havia entendido que eu estava absolutamente consciente de estar correndo o risco de ser deportada dali mesmo. Ela então empurrou os documentos de volta para mim e disse objetivamente:
No seu caso, o único modo de entrar com o pedido da cidadania italiana por descendência é novamente entrar no Espaço Schengen. Caso você desembarque em outro país, dentro de oito dias já em solo italiano, é necessário fazer a Declaração de Presença. Disso e do resto, creio que você sabe muito bem como proceder. Ti auguro buona fortuna!
Abri um mal disfarçado sorriso brejeiro, a fitei de modo a expressar imensurável gratidão, assenti com a cabeça, peguei meus documentos e me retirei muda. Ela soube fazer a leitura do que eu carregava no peito. Aliviada e feliz, fui passear pela orla.
Prefeitura da fração VIII do Município de Roma
Passados quase dois meses de trabalho e perrengues no escritório, finalmente consegui ir e voltar do Brasil. Chegado o momento do grande gargalo do processo da cidadania italiana – a residência – coloquei a pastinha debaixo do braço e fui até a prefeitura. A elegante, muito educada e já madura funcionária exclamou:
– Você fala bem o italiano!
Abri um sorriso largo. Expliquei que eu havia estudado a língua na universidade e, agora, ao lidar com o romanesco da turma do escritório, estava sendo uma ótima oportunidade de desenvolvê-la. Ela me fitou por breves segundos. Virou-se para o computador, digitou algo, imprimiu e deu para eu assinar. Disse que eu poderia me dirigir ao Ufficio Cittadinanza para dar início à tramitação da cidadania em si. Eu, naquele típico delay de quem não processou a informação, franzi as sobrancelhas e perguntei confusa:
– E o vigile?!
Com a feição lambida, ela sorriu displicente:
Stai a lavorare. Non ci sono gli orari… Troppo casino… Non c´è bisogno. Buona fortuna!
(Você está trabalhando. Não temos horários disponíveis… [visitas do fiscal]. Muito trampo… Não há necessidade. Boa sorte!)
Ainda com cara de ponto de interrogação, tentei ensaiar o meu melhor sorriso e a agradeci muito honestamente por desembolar bastante o meu meio de campo. Apesar da justificativa do viés técnico, ela também soube fazer a leitura do que eu carregava no peito.
Anagrafe Centrale di Roma Capitale
A funcionária do Uffico Cittadinanza, um tanto séria e muito objetiva, ignorou solenemente o fato de as minhas certidões já estarem idosas o suficiente para serem indeferidas. No entanto, surgiu um fato que não podia ser ignorado: a Certidão Negativa de Naturalização (CNN) do meu bisavô entrou em conflito com a Certidão de Óbito, a qual consta que ele se naturalizou.
Na época em que a CNN não tinha emissão on line, o Ministério da Justiça expediu o documento erroneamente sob motivo até hoje não explicado. Sendo assim, o necessário a se fazer para reverter a situação era contactar Brasília, explicar o ocorrido, comprovar o engano e emitir a Certidão Positiva de Naturalização.
O problema maior seria fazer o documento passar novamente por toda a tramitação. Vale ressaltar que, na época, ainda não existia o Censec nem o Apostilamento pela Convenção de Haia. Então o longo caminho a ser percorrido ainda seria o de enviar a certidão para Minas Gerais, reconhecer firma de escrivão de Brasília em específico cartório de Belo Horizonte, legalizar pelo extinto EREMINAS, traduzir, legalizar pelo Consulado e enviar para a Itália.
Quase morrendo na praia
O tempo que eu tinha disponível para realizar tudo isso era aquele que restava para completar os 90 dias previstos por lei. Não seria o suficiente. Seus olhos grandes e negros me fitavam com certo pesar. Eu tinha poucos segundos para organizar meus pensamentos e desarmar uma bomba que influenciaria toda a minha vida.
Ainda que eu tivesse passado por inúmeras encrencas para chegar até ali, aquela foi a primeira vez que eu senti vontade de chorar. Respirei fundo:
– Para eu me manter legalmente aqui na Itália, basta eu fazer o Permesso di Soggiorno específico para aguardar o desenrolar o processo, certo? Para isso, o tempo que me resta aqui é o suficiente, certo?
Os dentes salientes se abriram num sorriso comedido em meio ao rosto sério de pele queimada de sol: “Sì, giusto.”
O bom senso da funcionária do Ufficio Cittadinanza ao lidar com a cidadania italiana
Então eu lhe expliquei detalhadamente todas as etapas pelas quais o documento passaria para chegar até aqui. Eu a fiz compreender que simplesmente não havia tempo suficiente. Ante a impossibilidade de manusear o tempo, questionei se ela – como funcionária da Administração Pública – gozava do Poder Discricionário, o qual a facultava decidir pela suspensão da decorrência do prazo.
Ela pareceu ter tomado um susto. Salientei que eu estava com a corda no pescoço por uma questão burocrática. Afinal, o meu direito ao reconhecimento da cidadania italiana estava ali comprovado, escancarado. Eu iria, sim, arcar com a responsabilidade de providenciar o documento correto e manter regular a minha situação no país. Eu estava ali para provar minha condição de cidadã italiana. Não fazia o menor sentido eu viver ilegalmente nos grotões da Itália a conduzir uma vida de merda.
Ela se refestelou na cadeira, cruzou as mãos sobre a barriga, gastou infindáveis segundos a refletir, fitou-me muito séria e ponderou:
Daqui a cinquenta anos, não mais existirão romanos filhos de romanos nascidos aqui. Isso é um dado estatístico. Roma sempre foi um caldeirão multiétnico e cultural. Não importa a miscigenação. Porém, está havendo desequilíbrio. Rusgas, bairrismos. Guetos. É importante – necessário – contribuir com aqueles que vêm a nos acrescentar.
Eu nunca mais me esqueci dessas profundas entrelinhas. Ela então imprimiu o recibo atestando a entrega dos meus documentos e início do processo. Reiterou que o prazo seria suspenso e que eu deveria portar-lhe a Certidão Positiva. Ela também soube fazer a leitura de ter tirado uma bigorna das minhas costas.
Jésus Carvalho Espósito
Claro que a funcionária sentiu firmeza e credibilidade nas ponderações, claro que era um erro nada comprometedor, claro que a funcionária, experiente, sabia que Paula Souza Espósito “iria acrescentar”.
Nada mais justo…
V. Costa
Everything in life changes after a given length of time, nothing ever stays the same. This is the nature of life.
Speaking about changes, how things evolve and how things return to a former or less developed state, over the course of its long history, the Via Appia has been extended, repaved, rerouted, and eventually, replaced with a modern highway system. I assume that nowadays “Not All Roads Lead to Rome”. LoL.
Paula Esposito
Verdade; além da marcha do tempo e das reviravoltas que lhe são inerentes, eu também fico a pensar nas linhas tortas.
Maria Helena de Souza Pinto
Já sabia de todos os perrengues passados na Itália, mas ler sua narrativa, com todos os detalhes, cada vez mais, me faz sentir orgulho de você!
Dante
Caraca! Vc deveria ter feito diplomacia; vende até avião caindo!
Paula Esposito
Sabe que não é má ideia? Já até pensei nisso, mas a Diplomacia, não raro, assume caminhos nebulosos. Fica complicado para quem tem ética.
Dante
No teatro (bem) antigo, os atores usavam uma máscara, talvez simbolizando a dupla personalidade, especialmente adotadas na convivência social. Não só no teatro antigo, mas nos filmes italianos do século passado, dos diretores Visconti, Fellini, Pasolini, Bertolucci, Antonioni & Cia.