Cidadania Italiana e a negativa da residência: Anagrafe X Polícia Municipal (V)

23 de novembro de 2020 Paula Esposito

A negativa da residência para o processo da Cidadania Italiana nem foi tanto o motivo do meu espanto. Afinal, é possível ter o pedido negado por motivos críveis, pautados em lei. O problema foi vislumbrar os contornos cada vez mais nítidos de uma “manobra” da prefeitura no sentido de atravancar (ou impedir) o andamento do processo.

 

O sr. Montana me comunicou ter chamado o sr. Elio para nos ajudar a resolver o problema com o Anagrafe, pois ele era um genuíno trentino, residente ali há tempos e casado com uma brasileira. Embora eu tivesse sérias objeções sobre esse tipo de intervenção, achei melhor não me opor. Conhecendo melhor a personalidade do sr. Montana, sabendo que o sr. Elio foi seminarista e prevendo que o sr. Alessandro não lançaria mão do blazè para fazer barraco no Comune, deduzi que a presença do tal senhor não seria problema.

Acompanhados do nosso gentil, calmo e de muito bem pronunciado Português, o “colaborador” sr. Elio, descemos a ladeira. A cena na prefeitura era sempre a mesma (talvez fosse assim há milênios): o Anagrafe vazio, o sr. Alessandro concentrado (mas blazè) e a secretária dele sempre a nos fitar com os olhos esbugalhados. 

 

Diplomacias na cidadania italiana

Quando adentramos, o sr. Alessandro oscilou o olhar entre nós e o sr. Elio meio sem saber se existia alguma conexão entre os presentes. Do jeito que eu estava, eu permaneci. O funcionário se levantou e deu a precedência ao sr. Elio. Este, muito educado, explicou ter conhecido aquela família através da esposa, que é colaboradora da igreja, e que estava ali para tentar ajudá-los a entender o que havia acontecido na fiscalização do vigile urbano.

 

A diplomacia do Anagrafe

O sr. Alessandro, previsível, lançou-me um olhar furtivo e disse tranquilamente que isso era assunto a ser averiguado com a polícia, pois são eles os responsáveis pela fiscalização. Virou as costas e se sentou à mesa. O sr. Elio, sem ação, dirigiu o olhar para mim. Ainda refestelada na beirada da porta, falei secamente:

 

“A negativa da residência é juízo de valor do Anagrafe em relação aos apontamentos feitos pela fiscalização da polícia, sr. Alessandro.”

 

Ele então travou a mandíbula, colocou as duas mãos sobre a mesa, levantou-se depressa e replicou quase bufando: “O que vocês querem, afinal?” A Mariana, mais propriamente como um desabafo do que como resposta, abriu os braços e deixou escapar: “Critério, ora essa!” Nisso vieram exclamações inconformadas do restante da família. Era o prelúdio do que eu não queria: o barraco. Embora o sr. Elio tenha pedido calma, a situação esquentou.  

Para cortar o zumzumzum que já se acentuava, fui direto ao ponto:

– Sr. Alessandro, aqui na negativa da residência assinada pelo sr. consta a justificativa baseada numa visita que nunca existiu. Uma semana depois, fomos efetivamente fiscalizados e notificados pelo policial de que tudo estava nos conformes. Se não existiram outras visitas anteriores e ulteriores, afinal, qual foi o critério de tão abrupta negativa?

Todos se silenciaram. O sr. Alessandro, escarlate e apressado, tentou disfarçar a saia justa com a voz um tanto trêmula e já em tom alterado:

– Eu fiz a interpretação que me cabe baseado nas anotações feitas pelos policiais. Repito, se existe algo a ser contestado em relação às visitas, isso deve ser feito com eles.”

Perguntei onde ficava a polícia. “3º andar.”, respondeu.

 

A diplomacia da polícia

O Pablo, um policial jovem, alto, bonito e de aspecto altivo que eu já tinha visto à pé fazendo ronda, nos atendeu. Com o olhar de quem já tinha entendido o problema só de nos ver ali, se apressou em nos conduzir de volta ao Anagrafe para que pudéssemos – na sua presença resolver as coisas.   

Após soletrar lentamente a lengalenga para as duas autoridades, o sr. Alessandro disse que na “hipótese” de umas das datas da visita estarem erradas, seria necessário fazer um novo pedido de residência. O próprio sr. Elio, de um trentino para o outro, lançou um olhar incrédulo para o sr. Alessandro, abriu os braços e exclamou: “Mas isso não faz sentido algum!” Notando que o ânimo dos presentes começou a se alterar, o policial, interviu:

O controle do vigile usualmente é feito em mais de uma data. Além do mais, vocês não têm provas para afirmar que uma das visitas não existiu.     

O sr. Elio me fitou absolutamente passado, branco feito folha de papel. Eu entendi perfeitamente a vergonha pela qual ele estava passando. Devolvi a ele um olhar tranquilo, esbocei um sorriso e me dirigi ao policial Pablo: “o artigo 10 bis da lei 241/90 nos dá direito de acesso ao formulário da fiscalização.”

 

O soldado raso

Ele abriu um mal disfarçado sorriso cínico e disse que isso era assunto de polícia. E rapidamente subverteu a pauta me perguntando há quanto tempo estávamos na cidade. “Desde 1º de maio.”, respondi. Ele disse que nunca nos viu e perguntou se usualmente dormíamos ali. “Três meses de aluguel foram pagos antecipadamente e estamos sempre por aqui. Inclusive, com toda essa sua envergadura, eu já te vi várias vezes fazendo ronda.”

Enquanto eu argumentava, eu conseguia ouvir o sr. Elio traduzir o diálogo em voz baixa para os familiares. Quando eu falei já ter visto o Pablo fazer ronda, a Mariana – sempre sagaz – destilou o veneno: “Nessas rondas ele só não te viu porque você é baixinha…” Começou o prelúdio da confusão de novo. Farpas em incompreensíveis Português e Italiano levantaram voo. Eu assistia à cena totalmente pokerface. O sr. Alessandro simplesmente deu de ombros e retornou para a sua mesa. O sr. Elio, lúcido, disse que era melhor irmos embora. 

Ladeira acima, o sr. Elio se lamentava por aquilo e disse estar estarrecido com tamanha lambança. Ponderou que, apesar de eles estarem errados, não era boa coisa encrencar com o Comune. Eu ouvia e regurgitava as palavras dele com atenção. É sempre importante absolver os pontos de vista dos nativos.       

Comentários (2)

    • Em parte, isso é verdade, Dante. Até porque – embora seja uma percepção pessoal – do tempo que permaneci e rodopiei bastante por Portugal e Itália, eu sempre tive a nítida sensação de que a herança cultural brasileira é quase toda italiana, para bem e para o mal.

      A burocracia, em particular, não se trata de algo empírico, pois o nosso Direito foi importado de Roma. O fato é que Brasil e Itália são insuportavelmente burocráticos e os problemas que advém disso usualmente tangenciam o processo da cidadania, pois os funcionários públicos costumam nem conhecer os meandros e lacunas da tramitação. Você se lembra quando fomos fazer o Codice Fiscale? Foi-nos cobrado o Permesso di Soggiorno e eu tive que explicar que isso não era necessário. Mostrei o regulamento (circolare 32) e tudo foi resolvido.

      No entanto, acho importante salientar que existe significativa diferença de proporção entre as mazelas de lá e as de cá. A infraestrutura de saúde pública ainda é pública e ainda funciona. Idem o ensino aqui denominado “básico”, “fundamental” e “médio”. Até mesmo as universidades têm pagamento proporcional à renda. A coleta de lixo é realmente seletiva e existe reciclagem. Assim como são tratados os esgotos. Não tem preço poder cruzar a nado os pictóricos rios e lagos de Trento.

      Eu admito, sim, ainda que com tristeza, que a Itália esteja cada vez mais na rabeira da Europa. Talvez seja por isso que a desonrada conduta da prefeitura em questão tenha me ferido tanto. Mas eu ainda acho cedo para nivelar nossas duas terrinhas.

      Te agradeço imenso pelo breve comentário de entrelinhas , Conterrâneo! Isso me dá mais subsídio para trabalhar na contracorrente. Abraço nocê e na família!

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