Seguindo o planejado segundo as orientações da prefeitura da cidadezinha do interior de Trento e já devidamente instalados na residência, rumamos até o escritório do proprietário do apartamento. Lá pegaríamos a assinatura dele para o contrato de aluguel (contratto d´affitto) e concessão do uso do imóvel (cessione di fabbricato), ambos imprescindíveis para o pedido da transferência da residência para a Itália.
No dia seguinte, fomos à Agenzia dell´Entrate para registrar o contrato de aluguel e também tirar o Codice Fiscale, equivalente italiano do nosso CPF. Sendo os horários de abertura ao público da administração italiana mundialmente conhecidos como piada de mal gosto, nem o fato de a prefeitura estar ali do outro lado da rua foi o suficiente para pegá-la aberta.
Manhã seguinte chuvosa, munidos dos documentos acima citados e também da Declaração de Presença (Dichiarazione di Presenza), descemos a ladeira que separava nosso apartamento da prefeitura. O frio e a umidade da pequena cidade espantavam os moradores das ruas, nos deixando com a impressão de abandono. O Comune, num bonito e clássico prédio de três andares, estava com as portas em duas abas abertas. Logo à direita, havia uma porta identificada com Anagrafe e Stato Civile. Era ali o nosso destino.
À direita do balcão em “L”, havia duas mesas: uma vazia e outra com um homem já maduro, que nos fitou. Em frente, outra mesa com uma mulher nem tão madura que também nos fitou. Esta, tive a impressão que seus grandes olhos verdes transmitiam tensão; até mesmo um certo espanto. Ela então desviou o olhar para o homem.
O funcionário responsável pelo Anagrafe e Stato Civile
Este, cujos olhos negros repousavam frios atrás das lentes fundo de garrafa, o máximo que consegui extrair foi uma breve oscilação entre o cínico e o blazè. Enfim, ele tomou a iniciativa: “Prego?” Sua voz era aguda. Seu sorriso emoldurado à típica cortesia corporativa desnudou os dentes salientes.
Abri o meu melhor sorriso e me apresentei. Apresentei os três requerentes ao processo. Eles o cumprimentaram solícitos. Eu lhe disse objetivamente que aquela família ali estava para fazer a transferência da residência do Brasil para Itália a fim de iniciar o processo de reconhecimento da cidadania italiana. Ajuntei que eu havia mandado um e-mail há poucos dias anunciando nossa chegada.
Ele assentiu com a cabeça, levantou-se da cadeira e veio até o balcão. Alto, magro, cabelos predominantemente negros, ainda um tanto longe de serem propriamente grisalhos, e bem aparados. O aspecto severo fazia eloquente – quase uma aberração – a gola arrebitada da sua blusa polo. Estendi a mão para cumprimentá-lo e perguntei o seu nome.
“Alessandro”, respondeu. De fato, era esse o nome que constava nos e-mails que havíamos trocado.
Como deduzi ter ele a personalidade lacônica – a minha também é – apenas abri o sorriso da Monalisa para que ele fosse compelido a desenrolar o novelo. Ele então ajuntou que para fazer a residência seriam necessários o contrato de aluguel, declaração de presença, permissão do uso do imóvel, passaporte e Codice Fiscale dos requerentes. Sorrindo tranquila, assenti com a cabeça, tirei a mochila das costas, tirei a minha pastinha com todos os documentos separados por requerente e dei a ele.
Questionamentos descabidos em se tratando da cidadania italiana
Diante do meu gesto, o sr. Alessandro ergueu as sobrancelhas, fitou-me por cima dos óculos e exclamou seguido de indefinível sorriso: “Ah, você já está com tudo em mãos!” Solícita, ponderei: “Foi justamente no intento de me planejar que eu anteriormente havia entrado em contato com o sr. via e-mail.” Ele novamente me fitou por cima dos óculos e disparou sem titubear:
– Por que vocês escolheram esta cidade para fixar residência? Afinal (encolheu os ombros), vivemos numa cidade muito pequena e sem grandes atrativos.
– Porque foi aqui que encontramos um imóvel de histórico idôneo para figurar na lista de residentes da prefeitura e cujo proprietário aceitasse fazer a tramitação de modo correto.
Após breves instantes de meditação sobre o alcance da minha resposta, ele franziu o cenho e informou:
– O processo da cidadania italiana não tem tempo de conclusão previsto em lei. Creio que vocês tenham um trabalho no Brasil. Filhos. Quais são exatamente os vossos planos aqui?
Embora o sr. Alessandro tentasse se mostrar um sujeito opaco, suas perguntas à queima-roupa eram claramente dotadas de entrelinhas em relação aos desdobramentos oriundos da problemática que tem sido os processos feitos na Itália. Considerando que o nosso caso não se inseria na fatia “problemática” da força, apontei cada um dos requerentes e explanei calmamente:
Respostas honestas
– O sr. Montana é empresário, proprietário de uma empresa de projetos e instalação de infraestrutura de refrigeração hospitalar. Ele, em específico, tem planos de expandir seus negócios aqui na Itália, famosa pela sua engenharia de motores. Por ser proprietário, ele não fica preso em intervalos de férias e pode conduzir sua equipe remotamente.
“A sra. Filomena é irmã do sr. Montana e esposa do sr. Corando, o qual é aposentado.”
“A Mariana, filha da sra. Filomena e do sr. Corando, é publicitária, solteira, legalmente contratada por uma empresa brasileira e trabalha remotamente de qualquer lugar do mundo. Se o sr. averiguar no carimbo no passaporte dela, verá que ela chegou de Nova Iorque. Ela tem planos de se aperfeiçoar nos estudos e trabalho aqui na Itália.”
O sr. Alessandro, enigmático, assentiu com a cabeça, baixou o olhar e folheou documento por documento com seus dedos longos. Foi o tempo de descansar a minha cabeça já meio zonza pelo esforço em entender o terrível sotaque trentino. Ele então disse: “Parece estar tudo ok. Por favor, preciso do vosso passaporte.”
Ele prontamente tirou as fotocópias e nos passou o formulário do pedido (domanda) da transferência da residência. Sob a justificativa de ter que analisar os documentos entregues, ele agendou a devolutiva da domanda para segunda-feira. Agradecemos e nos despedimos.
A primeira impressão é a que fica
Saímos da prefeitura quentinha para o frio das ruas. O sr. Montana me perguntou se correu tudo bem. Respondi ter saído tudo como o previsto. Já o sr. Corando nos trouxe a piada que rendeu para a posteridade: “Que cara esquisito! Vocês viram como ele põe a gola da camisa?! Parece um vampiro!” Daí foi gargalhada ladeira acima…
A sra. Filomena – sensitiva e de aguçada inteligência discreta – veio me perguntar se eu sabia onde era a igreja e o horário da missa de domingo. Ela disse querer agradecer por aquele dia. Eu sorri e a conduzi para a varanda. Dali mostrei a torre da igreja e disse que eu iria descobrir o horário da missa para ela.
O fato – fosse pelo questionamento do sr. Montana, pela piada do sr. Corando, pelo ímpeto da sra. Filomena em recorrer à prece ou pelo silêncio meu e da Mariana – era que o sr. Alessandro não nos deixou boa impressão. Cada um de nós, a seu modo, sentiu uma pontada no peito.
Cidadania italiana: Opinião pessoal x Ética
Eu, particularmente, somados aos bons anos de Itália e Europa, senti muito claramente que o tal sr. Alessandro não tinha o discernimento – ou a ética – do que seria o seu papel como funcionário público e a sua opinião personalíssima sobre as nuances, para o bem ou para o mal, provocadas pelos processos da cidadania italiana.
Domingo fomos à missa. A temática percorreu o conceito da empatia, lucidamente apontada pelo padre em contexto bem moderno. Surpreendeu-me, inclusive. O coral de jovens – lindamente afinado – e a missa rezada em italiano me deixaram leve e emocionada.