Em 2017, a Sarita me mandou um vídeo do youtube com um galerão ordenadamente espalhado entre quadrantes de trocentas baterias, guitarras, baixos e microfones, num lugar descampado, ensolarado, de quase verde esturricada relva. Tratava-se de uma banda gigante a tocar Learn to Fly, do Foo Fighters. O local? Cesena, centro regional da província onde fiz minha primeira busca de documento para processos de cidadania italiana.
Um sorriso se iluminou. Logo na primeira pegada da canção sob a regência do maestro descabelado, eu senti meu corpo arrepiar ante a beleza da cena em si. Dentre crianças, jovens e adultos de diferentes nacionalidades, centenas de pessoas irradiavam alegria, positividade e realização ao cantar ou tocar seus instrumentos, cujos timbres em uníssono eram captados por muito bem organizada distribuição de microfones. Dava para notar se tratar de algo estruturado. Alguns trajavam uma blusa com uma certa logomarca Rockin´1000.
Rockin´1000.
Aos meus olhos, a sinergia das pessoas realçou a letra da música. Embora eu tenha imediatamente reconhecido os arranjos de Learn to Fly, eu nunca tinha notado suas linhas. Sugestiva. De repente, me vi meditando sobre a minha bateria há muito encaixotada e o quanto eu gostaria de poder participar de eventos como o do vídeo que transcorria triunfante sobre meu sorriso amarelo e desesperançado.
Ao final da canção, a surpresa que faz brotar a lagriminha inconveniente e que estimula qualquer um a querer alçar voo: um italiano, Fabio Zaffagnini, num discurso modesto e sincero, disse ter passado mais de um ano organizando aquela saga que, no final das contas, juntou mais de mil roqueiros que ali chegaram por conta própria, tão somente pelo pulso de fazer parte daquilo. O motivo? Pedir ao Foo Fighters para fazer um show em Cesena.
Eu estava incrédula, impávido colosso. Aquela obra de arte foi idealizada como chantagem emocional de fã para arrastar os caras do Foo Fighters até lá! Vi o meu reflexo na tela do monitor. O sorriso já havia se transmutado para aquele tipo bem gozado: C E S E N A !!
Cesena
O ano de 2016 foi o primeiro que conduzi clientes à Itália para fazer o processo da cidadania italiana. Naquela ocasião, aproveitei o ensejo para dar uma escapada até a pequena Dovadola, localizada na província de Forlì-Cesena, para buscar a certidão de nascimento de uma certo Quinto Poggiali. Lembro de tê-lo feito em caráter de urgência porque os descendentes no Brasil estavam na iminência de entregar a documentação ao Consulado e deixaram tudo para a última hora.
Dovadola
Do caminho percorrido pelo trem até a estação de Forlì, deu para notar que a linda e úmida paisagem de outono da Emilia-Romagna abrigava uma cidade bonita e organizada, de pequeno para médio porte, porém com baixa densidade demográfica e maciça presença de idosos. Talvez fosse esse o motivo de “Forlì-Cesena” sugerir tratar-se da aglutinação de duas províncias.
Dentro do ônibus a caminho de Dovadola – localizada em distante diagonal entre as duas referidas cidades – a linda paisagem de predominância natural, entremeada por bem cuidadas plantações de subsistência, sugeria-me que a região como um todo abrigava a típica atmosfera provinciana e pacata do interior da Itália; bem longe do perfil grunge da quebradeira de Seatle.
O retorno a Cesena
Já em 2018, quando em viagem à Itália para conduzir outra família a fazer o processo da cidadania italiana, novamente aproveitei o ensejo para buscar pessoalmente alguns outros documentos localizados em cidades de inóspito acesso: as joias da Itália. Afinal, se perder no Bel Paese significa ganhos, ainda que tomemos chuva, neve e sol causticante andando quilômetros a pé voltando de alguma cidade em que o busão vai e não volta…
Da lista que eu tinha em mãos, havia pequenos tesouros espalhados em diferentes formas de relevo e herança cultural. A cidadezinha de Bertinoro me saltou aos olhos porque o trajeto me levaria a Cesena. Cesena pela qual eu havia passado, indolente, pelos arredores em 2016. Cesena que fora palco da fantástica realização de um roqueiro inveterado (todos nós somos). Com um sorriso bobo, considerei que seria legal retornar ali com outra perspectiva.
Com o coração quente, sob o frio das vésperas do Natal, parti para Cesena. Eis a paisagem da úmida natureza. Tive a sensação de que mais pessoas desembarcaram comigo na estação, embora eu não estivesse muito segura que o local fosse necessariamente mais populoso ou agitado que Forlì. Havia mais jovens. Ali me informei que eu deveria pegar o trem até Forlimpopoli e de lá pegar o ônibus para Bertinoro.
Bertinoro
Por um tremendo golpe de sorte, até que o ônibus não demorou. A distância não era grande, mas a ladeira acima faz miar qualquer motor. Lá no alto, a bucólica Bertinoro: burgo medieval típico, estratégico, no cume da montanha, muito bem conservado em meio a bosques, delicioso de ser desbravado a pé.
Dentro do Comune – outrora Palazzo Ordelaffi, datado de 1306 – como sempre, fui o centro das atenções. Conversas de cá, curiosidades de lá, justificativas acolá, o atto di nascita di Annibale Greggi em mãos e a problemática do horário do busão. A funcionária mais gente boa disse que ali não era difícil descolar uma carona, pois sempre tem alguém indo ou chegando de Cesena. De fato, um senhor que estava atrás de mim na fila pescou a conversa e ofereceu de me levar até lá.
O Piero, depois de me perguntar sobre minha história e hobbies, me contou que Bertinoro faz parte do circuito de bike, pois ali existem trilhas muito bonitas que agradam à turma do pedal. Daí ele adaptou a rota para passarmos numa das pictóricas trilhas do circuito, onde fica La Rocca, construída antes de 1000 d/C.
O rock n´roll
Sentamos na lanchonete da estação de Cesena. Salivando ante à xícara de cappuccino con la cacao que a senhora colocava sobre a minha mesa, perguntei ao Piero se ele sabia algo sobre o rockin 1000. Ele sorriu, apontou para a esquerda e disse com os olhinhos brilhando: “Foi ali no hipódromo. Eu acompanhei de longe, mas parece que foi bem legal! Agitaram a cidade!”
Então ajuntei serelepe:
“Nós, roqueiros, fazemos isso, Piero: agitamos poeira, rompemos a barreira do som, descontruímos almas empedernidas e somos iconoclastas!”
Caminhando devagar, com as mãos cruzadas nas costas e o sorriso arteiro no rosto, cruzei a plataforma de embarque de ponta a ponta na direção do hipódromo, agora ali, em silêncio. Olhei ao redor. Discreta Cesena. Querer é poder.
Enfim, o resultado da chantagem emocional da reunião dos mil roqueiros?