14. Dentre carreira solo e Dire Straits, o gelo europeu se derrete sob o efeito Knopfler

27 de junho de 2016 Paula Esposito

Curioso era ver o contraste entre a superbanda do Mark Knopfler e o palco de fundo preto, com a sigla do festival em branco, iluminação básica e sem qualquer recurso de telão. Eu pensava se um palco entupido de recursos tecnológicos abrilhantaria ou ofuscaria a consonância de músicos tão talentosos.

 

Isso é algo que deve ser bem planejado, pois pode levar a efeitos indesejáveis. Funciona bem no intuito de veicular a mensagem político humanitária do U2. Funciona mal no intuito de disfarçar a música sofrível do Iron Maiden: entra caveira, sai caveira e os seis caras não fazem o que o trio do Rush faz no palco.

 

O Mark Knopfler compôs a trilha sonora de momentos cruciais da minha vida

Done with Bonaparte

O trio acordeon, gaita de fole e violino anunciaram a “prece” conhecida como Done With Bonaparte. Lembrei do Rafa, que sempre me dizia nutrir especial afinidade com essa música, pois parecia ter sido escrita para ajudá-lo a suportar a dor do tratamento do câncer. Sua mãe me disse que momentos antes da sua morte, ele cantou uma música que ela achava ser do Dire Straits, mas creio eu que tenha sido Done With Bonaparte. Com certeza foi. Era o momento da redenção dele.

Não senti nenhum pesar. Tampouco vontade de chorar. Deduzi que, pela facilidade de locomoção e diferença de massa corporal entre mortos e vivos, provavelmente o Rafa estaria ali sentadinho ao lado do Mark sentindo o feeling da guitarra cromada. O legal dessa música é que o clima dela não é tenso como sugere a letra. O arranjo é leve e alegre, como se estivéssemos em torno de uma fogueira tocando alguma típica cantiga escocesa.

Em Marbletown a potência da banda veio à tona. Ricas improvisações de quase todos os instrumentos e divertidas batalhas de solos entre os instrumentistas. Nessa música a iluminação pairou sobre todos os componentes da banda. Ninguém brilhou mais ou menos. Para quem gosta, foi um ponto alto do show. Aplausos até a exaustão.

Quando as inconfundíveis três notas ecoaram do violino e romperam o silêncio, outra taquicardia. O italianinho do meu lado sorriu e berrou: “bellissima canzone!”. Arreganhei os meus dentes ao ouvir o prelúdio de Speedway At Nazareth – a minha música – desnudar-se no palco. A voz grave do Mark conduzia a minha imaginação àquele rallie evocado pela letra. Nunca o Inglês me pareceu tão fluente. Eis o verso que puxa o solo: “But in speedway at Nazareth I made no one mistake.

 

Mark Knopfler - Get Lucky Tour 2010 (2) Milão - Itália

Improvisando.

 

Speedway at Nazareth

Quando a levada tribal seguiu a chamada feita pelo prato, todas as merdas que aconteceram comigo na época em que conheci e ouvia muito essa música passaram pela minha cabeça: os meses a fio que andei sem um centavo no bolso, a minha magreza oriunda de um imenso vazio, a escravidão do meu free lancer numa agência de viagens, as chuvas torrenciais e o frio nos 50 minutos de bike até o laticínios onde eu trabalhava, os dias pesados e desrespeitosos que se arrastavam lentamente até culminarem com a morte do Christian e o meu roteiro engavetado de um curta-metragem. Acho que aquela foi a pior época da minha vida. Novamente não senti pesar, afinal, eu estava bem ali.

Pouco depois do momento do solo em que a caixa rompe a hegemonia dos graves e também da guitarra que já gritava um solo, o Mark joga o seu braço num gesto de ceder licença para o teclado. Para a minha surpresa (e faniquito), esse foi o único momento do show que ele se levantou da cadeira! Parou em frente ao tecladista e posicionou-se de forma que suas pernas ficaram uma mais adiante da outra, enquanto seu tronco ficou curvado sobre a Gibson Les Paul.

Raspou os dedos nas cordas com uma força tal que pude sentir as vibrações transpassarem meu corpo. Jogava a guitarra de um lado para o outro rasgando uma melodia que aos poucos ia fazendo a galera se levantar da cadeira. Ao final, berros.

 

Mark Knopfler - Get Lucky Tour 2010 - Matt Rollings (Milão - Itália)

Matt Rollings: o responsável pela outra ilha de teclados e acordeon.

 

O efeito Mark Knopfler

Sob a penumbra do palco, alguns longos segundos. Discretamente, bem ao fundo, os acordes do teclado, facilmente reconhecível por qualquer fã do Alchemy. Gritos. Para a nossa grata surpresa, a melodia do teclado foi substituída pela flauta transversal. Odes. Daí veio o dedilhado na guitarra cromada. O prelúdio da música foi fiel. Berros. Algo me dizia que o gelo europeu também poderia ter as suas calotas derretidas pelo efeito Knopfler.

Quando o Mark começou a cantar, ou melhor, recitar a letra, deduzi que aí viria uma nova versão de Telegraph Road. Acertei. A canção ganhou uma roupagem mais delicada e calma, com uma bonita base feita pelo banjo e piano. Na minha opinião, esta delicadeza tiraria a “pegada” visceral da música, que é o que mais gosto nela.

Talvez não fosse mera questão de estética musical, mas operacional: o Mark não conseguiria cantar a música em seu tom original e muito menos gritar “And I don`t wanna see it again!” que fecha a passional penúltima estrofe da música. Então que fossem feitas as cabíveis adaptações voz e arranjo. E ficou mesmo muito bonita. Não sei se para compensar essa adaptação, o solo final da música foi aquele do Alchemy: pau quebrando! Alguns senhores daquela época já estavam de pé. O italianinho filmava. Eu pulava e rodava a minha camiseta. O porquinho eu já não sabia onde estava.

Os tios da banda se juntaram à frente do palco para fazerem o tradicional charminho disfarçado de despedida. O Mark nos empunhou um copo de cerveja num ato de celebração. Bebeu, sorriu, acenou e se retirou.

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