Ciente que o cristianismo foi um divisor de águas na História de Roma, na intenção de preencher lacunas do meu incipiente conhecimento neste sentido, saí em busca dos apóstolos Pedro e Paulo e acabei encontrando a mim mesma na Via Appia Antiga.
No início da Via Appia, em frente à porta de São Sebastião, comecei a sentir um aperto no peito. Respirei fundo. Segui caminhando. À medida que eu avançava, eu notava maior arborização e até diferença de temperatura. Os atalhos, as vielas, a vegetação me provocavam estranhas sensações. Aquilo me parecia familiar.
Eu arfava e massageava o peito. Poderia ser cansaço. Comi alguns biscoitos e bebi muita água fresca que eu colhia nas bicas espalhadas por Roma. Não adiantou. Eu sentia mesmo que meu coração estava apertado. Comecei a sentir frio e vontade de chorar.
Respirando fundo, me dei conta de estar numa bifurcação, cujo outro caminho, um morro, dava acesso a um bonito descampado. À esquerda, do outro lado da rua, uma discreta capela. Meu ímpeto foi adentrar, mas tinham muitos turistas. Como eu já estava com olhos marejados, optei por subir o pequeno aclive.
O acesso às tumbas de São Calixto
Com o corpo já um tanto trêmulo, senti um arrepio subir pela minha espinha. Olhei para trás. Ali do alto, bem ao longe, avistei as duas torres da Porta de São Sebastião. Bem naquela direção, atrás do portal de onde percorri o caminho da vinda, escravos e cristãos nutriram a selvageria do “pão e circo” no Circo Máximo. Tudo ardeu sob as chamas do grande incêndio de 64 d.C. Era possível até imaginar uma espessa fumaça se dissipando de lá.
Baixei a cabeça e fui caminhando devagar até próximo a uma encruzilhada com lindos ciprestes que reluziam sob o sol. Vi que havia um pequeno grupo de turistas reunido numa espécie de guarita. A placa adiante me informou serem as Catacumbas de São Calixto. Saí da estrada para a verdíssima relva. Tirei a mochila. À moda muçulmana, ajoelhei-me com a testa pousada na grama, me concentrei numa prece e deixei as lágrimas lavarem todo aquele turbilhão.
Recomposta, levantei-me depois de nem sei quanto tempo. Abri um sorriso largo, joguei a mochila sobre um ombro e rumei serelepe para o outro acesso à Via Appia. Adiante, a Basílica e as tumbas de São Sebastião.
O traslado do restos mortais de São Pedro e São Paulo para as tumbas de São Sebastião
Eu havia lido que antes das sucessivas reconstruções e ampliações como as conhecemos hoje, as basílicas de São Pedro e São Paulo eram modestas capelas erguidas nos locais onde os apóstolos foram enterrados (no caso de São Pedro, à distância de 150 metros da sua crucificação). Pelo fato de ali serem as casas onde jaziam seus restos mortais e relíquias, tornaram-se pontos de adoração e peregrinação do cristianismo nascente.
Porém, para salvá-los da profanação ante as perseguições deflagradas contra os cristãos, tais relíquias e restos mortais foram transferidas para aquele ponto da Via Appia – onde já existiam as tumbas de São Sebastião e a igreja homônima – para, posteriormente, retornarem as suas respectivas “casas”. A história é muito incitante. Eu me perguntava sobre o porquê de os restos dos apóstolos terem sido levados justamente para aquele lugar.
Eis o grupinho de turistas parado numa porta adjacente à entrada da basílica. Atravessei a rua. Eis a bilheteria de acesso às tumbas. Aquele era o momento.
Visita às Catacumbas de São Sebastião
A visita é guiada e tem separados os grupos conforme o idioma. Como a língua portuguesa parece não existir no planeta, fui na trupe dos italianos que vieram de Trento e Napoli. A guia começou o tour nos informando que a área total tomada pelos cemitérios soma cerca de doze quilômetros com 4 níveis de subsolo. Foram mais de centenas de milhares de corpos distribuídos em cubículos cavados na parede e tampados com madeira. Eu tomei até um susto.
O escuro e úmido labirinto é tão imenso que, à medida que descíamos os níveis, a queda da temperatura nos compelia a colocar um casaco. Quando chegamos numa câmara, até grande, a guia nos mostrou afrescos na parede. Com o auxílio de um laser, apontou rabiscos feitos com grafite. Muitos desses, alguns gastos e outros bem visíveis, eram os nomes Petrus e Paulus.
É sempre interessante observar as reações das pessoas. Os vieses suscitados pelo tema “religião” parecem infindáveis. Um casal se prostrou. Muitos se recolheram em orações. Desses, alguns choravam. Outros, analíticos, percorriam o olhar pelo entorno. Nenhum poker face.
Era sabido que estes cemitérios subterrâneos eram locais de culto do protocristianismo. No entanto, mesmo que o ambiente ali não me trouxesse peso, só de imaginar multidões espremidas num ambiente inóspito já faz doer o coração. Parecendo ter lido meus pensamentos, a guia esclareceu detalhes técnicos muito relevantes.
Os cultos cristãos nos cemitérios romanos não eram secretos
Ao contrário do que reza a tradição, as tumbas não eram locais de refúgio dos cristãos. Os cemitérios eram comunitários, reconhecidos pelas autoridades romanas em relação à localização, ampliações e função. Esses terrenos constavam nas plantas da cidade e sofriam taxação, inclusive o subsolo. Justifica-se o acúmulo de cemitérios no entorno da Via Appia porque os terrenos dos arredores de Roma eram mais baratos.
Ao longo do século II, as perseguições aos seguidores de Jesus já haviam arrefecido e o próprio cristianismo já estava melhor assentado. Por conseguinte, os discípulos da doutrina se organizaram no sentido de desvincular as próprias sepulturas daquelas pagãs, como foi o caso da área I do Cemitério de São Calixto.
Eu estava estupefata e faminta. Atravessei a rua e me sentei aos pés de um crucifixo bem em frente à basílica. Mandando ver na boia, comecei a ler o livro sobre assuntos correlatos que eu acabara de adquirir.
Levantei-me revigorada. Apertei os olhos para tentar antever o que a Via Appia ainda tinha lá adiante, pois o meu coraçãozinho já estava começando a acelerar de novo. Coragem. Segui.
A Tumba de Cecilia Metella
Não muito longe dos cemitérios subterrâneos, desponta imponente um gigante cilindro feito em pedras, o Túmulo de Cecilia Metella. Trata-se do mausoléu da filha de um então Cônsul da velha república. À semelhança do Mausoléu de Adriano, a câmera cilíndrica onde fica o sepulcro tem como base um cubo. Em anexo, o Castello Caetani abriga uma exposição das peças arqueológicas ali encontradas.
No subterrâneo da exposição tem uma maquete explicando que o assentamento do mausoléu está sobre rocha magmática oriunda do fluxo de lava do Vulcão Laziale, nas Colinas Albanas.
A existência de um vulcão na região do Lazio foi uma surpresa pra mim. A título de curiosidade, numa das colinas conhecida como Castelli Romani, está o famoso lago de Castel Gandolfo, que descobri ser de origem vulcânica.
Pouco adiante, nas proximidades das ruínas da Igreja de São Nicolau, notei que aquele trecho da estrada estava diferente, com grandes maciços de pedras já gastas pelas intempéries e bastante escorregadias.
No entanto, eu observava que o formato delas – ainda que gastas – não pareciam aleatórios, como se fossem pedaços brutos dispostos na terra. Saquei do bolso um folder sobre a Via Appia que eu tinha pegado na guarita do Cemitério de São Sebastião.
A Via Appia Antiga
O informativo dizia que a Via Appia – em memória ao político Appio Claudio – foi iniciada em 312 a.C. para conectar, a princípio, Roma a Cápua. Após, foi sendo ampliada até Benevento, Taranto e, por fim, Brindisi, o “calcanhar” da Itália (264 a.C.). Isso lhe rendeu o apelido de Regina Viarum (rainha das estradas).
“Considerada uma das estradas mais antigas de Roma, a Via Appia foi construída com pedras em formato poligonal e tinha largura de 4,15 metros: espaço suficiente para passar duas carruagens em sentido duplo. Tinha calçada para pedestres em ambos os lados, com largura de 1 metro e meio em terra batida e delimitada por um cordão de pedras.”
Com o olhar fixo a esquadrinhar o calçamento da estrada, forcei a memória para me lembrar de onde eu tinha visto algo similar: na porta da Basílica de São Paulo, talhada em alto relevo. Daquilo que eu havia me informado, o local onde o apóstolo foi executado não é muito claro.
A decapitação de Paulo?
A teoria mais difundida reza que o sepulcro foi feito há quatro quilômetros de onde ele foi morto, na Via Ostiense. No entanto, não há menção se essa distância foi percorrida na própria Via Ostiense. Pensando no traçado original dessa rua e também o da Via Appia, o exato local da decapitação do apóstolo me aguçou o espírito.
A certa altura do trajeto, ambas as estradas passam próximas, sobretudo no trecho entre a própria Basílica de São Paulo e o acesso às Catacumbas de São Calixto pela Via Ardeatina. Fato curioso é que, originalmente, a própria Via Appia partia da Porta Capena, que tem suas ruínas num trecho do caminho entre o Circo Máximo e as Termas de Caracalla). Era justamente nos arredores dela, o lugar onde o apóstolo Paulo já teve a sua morada junto de outros discípulos do Cristo.
Com um sorriso de satisfação, segui devagar com os braços cruzados nas costas. Eu já estava na marca da quinta milha da estrada quando avistei as ruínas do que parecia ser aquelas gigantes janelas das termas romanas.
A Villa dei Quintili
Eis a Villa dei Quintili. A grandiosidade que me remetia às termas era uma residência particular tão gigante que, de fato, havia uma terma! Segundo as informações contidas no local, pertencia aos irmãos Quintili, homens de Estado e bem relacionados.
A intimidade junto ao então imperador Marco Aurélio não trouxe bons agouros, pois, após a morte dele, os irmãos perderam a propriedade sob acusação de conjura por parte do filho do imperador, Cômodo. Este ficou famoso ao ser representado pelo Joaquin Phoenix no filme O Gladiador.
Na sucessão do trono, Cômodo então instituiu que a residência passasse a ser considerada uma Vila Imperial. A Villa dei Quintili também abriga exposição com as peças arqueológicas ali encontradas.
Spartaco
Eu já havia abusado do limite do meu corpo. Agora a passos acelerados fui tomando o caminho de volta. Observando o já gasto limite entre o meio-fio e a estrada, lembrei-me do episódio da crucificação dos 6.000 escravos guiados por Spartaco, cujos corpos ficaram expostos ao longo da estrada no trecho entre Pompeia e Roma (71 a.C.).
A tese de que o trágico episódio tenha alcançado esta cifra e tenha sido uma premeditada rebelião contra o “sistema escravista” é muito questionada. A hipótese é a de que os escravos foram aderindo ao grupo porque queriam retornar para a casa; não propriamente questionar a ordem estabelecida. De qualquer modo, a julgar pela proporção assumida, as crucificações foram uma “vitrine” que Roma impôs como demonstração da sua força política e militar.
Seguindo o caminho, dá para notar que nos terrenos de baixo valor imobiliário ao redor de Roma, além de pipocarem sepulcros em formatos geométricos espaciais, também tem em comum a presença das carvoarias.
Domine Quo Vadis
Chegando novamente à bifurcação da Via Appia com o acesso às Tumbas São Calixto, comecei a sentir o coração apertado. No mesmo lugar. Já meio engasgada, encostei-me num muro de pedras e comecei a massagear o peito. Na capelinha não havia mais ninguém. Olhei para a fachada: Domine Quo Vadis. Adentrei.
A fuga de São Pedro
Pequenina e modesta, logo se vê uma marca no chão: um cubo de mármore com pegadas. No rastro do cubo, um piso de pedras diferente do restante da igreja. De um lado, havia a imagem de Jesus desenhada na parede. Do outro, a imagem de São Pedro. Meus olhos estavam rasos de lágrimas. Na parede, a história:
“Pedro, no auge das perseguições, foi encorajado pelos cristãos a evitar a prisão e a fugir da cidade. O apóstolo então cruzou as portas de Roma na direção da Via Appia. Justamente no ponto onde hoje se encontra a Igreja, encontrou com o Mestre que vinha na direção contrária.
Pedro então o questionou: “Domine quo vadis?” (Senhor, onde vais?) Jesus respondeu: “Venio Romam Interum Crucifigi.” (Vou a Roma para ser novamente crucificado.)”
Ante a resposta, Pedro entendeu que seu próprio destino estava selado ao martírio desde o momento que Jesus deu a ele o governo da Sua Igreja. Então Pedro retornou a Roma e a figura do Mestre desapareceu, deixando suas pegadas no chão.
A paróquia Quo Vadis
Apesar da arquitetura reformada, Quo Vadis é uma das igrejas mais antigas de Roma. Ali eu senti o alento de uma Casa de Deus. Escrevi um modesto recado de agradecimento no livro de pedido de orações. Como eu estava sozinha e já estava tarde, deitei num dos bancos para chorar feliz e com o coração sem sobressaltos.
Sempre que vou a Roma, vou à Via Appia. Sinto que ali é o meu lar. Talvez muitos não entendam a conexão. Sempre me emociono. Sempre faço preces na relva de São Calixto. Sempre me aquieto em Quo Vadis.
Outras referências bibliográficas
No Natal de 2018, num sebo no coração de Roma, dei-me de presente o romance homônimo, Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz. Já o livro SPQR (Mary Beard) trouxe uma informação técnica muito importante sobre a decapitação do apóstolo Paulo:
“Paulo foi sentenciado à decapitação porque ele era cidadão romano, condição que lhe dava prerrogativa em relação aos não cidadãos, aos quais cabia a sentença pela crucificação.”
Sensação de pertencimento. Sempre me emociono.
Verissimo Costa
As bicicletas são permitidas na Via Appia Antica? Não vi alguma em suas fotos. A ausência delas se deve à proibição ou aos paralelepípedos? Se permitidas, deve ser bem divertido fazer alguns trechos de bicicleta, certamente deve valer a dores na coluna. E Via Appia Nuova?
Paula Esposito
Sim, as bicicletas são permitidas! Tem até para alugar! Os alemães que adoram! Acho que o calçamento não é o suficiente pra dar dores na coluna, mas se assim o for, coooom certeza vale a pena! Ainda mais em boa companhia! Pedalar – além de ser uma delícia em si – também economiza tempo no percurso, que é longo para se fazer a pé (o parque tem estradas vicinais). É tão lindo que a gente nem vê o tempo passar!
O porém é a presença de automóveis, inclusive ônibus. O tráfego, exceto no verão, não é tão intenso, mas é o suficiente para espremer pedestres e ciclistas. Alguns trechos da Via Appia nem meio-fio tem. Eu acho que o trânsito ali e nos arredores deveria ser proibido. Fora a barulhada e o cheiro de combustível num lugar tão aprazível e pictórico. Sou inconformada com isso.
A Via Appia Nuova já foi tão redefinida que virou avenida mesmo, urbana, daquelas bem rock n´roll. Não que tenha virado uma highway, mas em alguns trechos ela é de trânsito rápido. Eu tomei até um susto quando eu saí da Villa dei Quintili, lá do outro lado, e vi a confusão de carros. É por meio dela que chegamos ao aeroporto Ciampino, por exemplo.
Sobre as fotos, confesso, sou sistemática a ponto de tentar limpá-las o máximo possível: evito gente, lixeiras, postes, placa de sinalização, fio elétrico e lixos jogados no chão. Por várias vezes eu já cheguei a esperar pacientemente, por minutos, algum “papagaio de pirata” sair da reta. Em casos extremos, como na Fontana di Trevi, tive que chegar às 06:00 da matina para resolver o problema. rsrsrrsrs
Maria Helena
Desde a adolescência, sempre fui apaixonada por filmes romanos. Assistia todos. Naquela época, havia as fotonovelas e li algumas, passadas na Via Appia. Hoje, assisto todas as séries relacionadas a Roma e ao imperio romano. Ler a narrativa, através dos olhos de Paulinha, me dá muito orgulho e emoção. Belíssimo texto!
Paula Esposito
Imagino o quanto as fotonovelas passadas na Via Appia devem ter instigado o imaginário das pessoas! Quando eu te levar pessoalmente, você verá que será uma aula de História! É magnífico e nos toca!