A indelével Via Appia, ainda que eu pouco soubesse sobre os muitos vieses da sua história, me atravessou como surpreendente memória afetiva. Memórias que eu nem sabia existirem. Curiosamente, esse novelo começou a desembolar na tarde que passei numa outra ponta de Roma: na Basílica de São Pedro, Vaticano.
O aliciante sol do outono europeu é um convite a um passeio ao ar livre. Faziam poucos dias que eu tinha chegado a Roma. Considerei que uma caminhada pela Colunata de Bernini, na Praça de São Pedro, seria uma boa ideia. Assim o fiz. Da Via della Conciliazione, que desemboca na famosa praça, a beleza e grandiosidade arquitetônica causa estupor. Porém, no meu ponto de vista, impossível não contrapor a doutrina de Jesus àquela cena.
A Basílica de São Pedro
Após pente-fino e detectores de metais, adentrei na imponente basílica. A arte reina soberana: arquitetura, pinturas, esculturas e melodias emanadas por um coral de crianças. Somos tocados por diferentes sensações. Havia informações sobre cada obra ali presente. Eu devorava todas. Muitos turistas circulavam por ali também.
O bronze rebuscado e lindamente moldado das colunas do Baldaquino de São Pedro parecia contrastar com a figura simplória do pescador. Ainda que a Pietà de Michelangelo fosse etérea o suficiente a nos dar a impressão de poder sair andando do maciço de mármore, não foi o suficiente para apartar o meu incômodo, pois eu tinha a impressão de estar numa impecável exposição. Mas não em uma igreja.
Por causa da multidão, delimitou-se com cordas alguns dos bancos de madeira para a turma que queria fazer orações. Ajoelhei-me em um mais afastado do trajeto dos turistas e tentei me concentrar numa prece. O agudo macio da voz das crianças não era o suficiente para abafar o zum zum zum e os crock crocks dos transeuntes. Eu não conseguia ouvir meus próprios pensamentos. Não havia silêncio. Não me refiro à ausência de som, mas à berrante escassez do alento que deveríamos sentir numa casa de Deus.
A desconexão da História do Cristianismo em relação à Roma
Levantei-me e fui caminhando devagar rumo à saída. De volta à colunata, vi as estátuas dos apóstolos Pedro e Paulo. O primeiro com as chaves do céu e o outro, austero, com uma espada na mão. Não sendo eu praticante ou grande entendedora do Catolicismo, confesso não ter compreendido a simbologia.
Cruzei os braços atrás das costas e me pus a refletir sobre a inexorável impossibilidade de desvencilhar a história de Roma daquela da doutrina de Jesus.
Apesar de o Vaticano ter surgido bem depois, claro que ele teve (e tem) fundamental importância no resgate e preservação da História, mas caberia à Città Eterna me contar os pormenores.
A Basílica de San Pietro in Vincoli
Dias depois, pesquisa de cá, revira de lá, em um trecho da Via Cavour, topei com uma escadaria numa travessa. Ela sai numa praça quase fechada em sua circunscrição, onde tem a entrada da Basilica di San Pietro in Vincoli. A igreja de construção e ornamentação simples nos surpreende com uma relíquia ali custodiada: uma pequena arca abriga uma corrente (do Latim, vincula) que, segundo a tradição, foi usada para algemar o apóstolo Pedro na sua prisão ainda em Jerusalém.
Reza a lenda que tanto a corrente usada na prisão em Jerusalém quanto a usada no Cárcere Mamertino (Roma), quando foram colocadas lado a lado pelo então Pontífice Leão I, milagrosamente se fundiram tornando uma só. Dessa minha pequena descoberta, chamou-me a atenção o fato de o apóstolo ter passado pela inquietante e desumana prisão Mamertina.
O Cárcere Mamertino
Localizada no Fórum Romano, com acesso próximo ao Arco di Settimio Severo, é datada do período monárquico de Roma. As teorias costumam convergir em se tratar da adaptação de uma cisterna em dois níveis abaixo do solo. Os prisioneiros sentenciados de morte eram jogados no segundo nível através de um alçapão.
Atualmente existe a comunicação entre as duas câmeras por uma escada. Originalmente, entre ambas só existia o alçapão. A masmorra inferior era hermética, onde os prisioneiros morriam de morte “natural”. Sentei-me num cantinho qualquer e fiz uma prece.
O mapa de Roma no Protocristianismo
Em casa, esquadrinhando o mapa de Roma, notei que a Basílica do outro apóstolo, Paulo, tem um nome curioso: Basilica di San Paolo Fuori le Mura (Basílica de São Paulo fora da muralha). Contextualizado a tradução, significa que a basílica foi edificada num ponto que outrora estava fora da muralha – no caso, a Muralha Aureliana – que delimitava e protegia a cidade. De fato, considerando e dimensão atual de Roma, a igreja ainda é considerada longe do centro.
Embora em menor distância, a Basílica de São Pedro foi erguida na outra margem do rio Tevere, então também considerada apartada da cidade. Aguçava-me a curiosidade ver a longínqua localização das duas basílicas que pareciam saltar do mapa para dentro dos meus olhos. O Pedro, eu descobri ter sido ele enterrado naquelas paragens. E o Paulo? Dele eu realmente não sabia nada.
Andarilho que se preza, também o faz por motivos de coordenadas cartesianas. Minha estratégia era a de sempre “varrer” um setor para não perder nenhum detalhezinho da Città Eterna, não importa o quanto a panturrilha fosse miar. Os meios de transporte me fazem perder referências. Sendo assim, meu ponto de partida era sempre o Colosseo.
Tangenciando o Palatino, tomei a Viale Aventino. Dei um golpe de vista no Circo Máximo à direita e nas Termas de Caracalla à esquerda. Cruzei a Pirâmide de Caio Cestio (eu nem sabia que Roma tinha pirâmide) e topei com a Porta de São Paulo. Dali devorei o chão da Via Ostiense até chegar à basílica.
A Basílica de São Paulo
Das colunatas, em meio ao pictórico jardim, é possível entrever a escultura do austero Paulo firmando a espada junto ao peito . Embora em proporções bem menores que a Basílica de São Pedro, a edificação tem arquitetura e estética “leves”. A ornamentação é muito bem harmonizada com os ambientes claros e amplos. O jardim é de impecável esmero.
Observando as temáticas dispostas quadro a quadro ao longo das grandes portas, duas me saltaram aos olhos: uma representa Pedro e Paulo, em vestes simples, se cumprimentando com um aperto de mãos e a outra mostra Paulo sendo decapitado. Esta me causou grande impacto.
A magnífica representação da decapitação do apóstolo Paulo
Talhada em alto relevo, traz a típica característica da arte bizantina:
Ampliar aquilo que se quer realçar, de modo a distorcer, aos nossos olhos, o senso de proporção dos traçados.
A primeira coisa que nos salta aos olhos são as mãos do apóstolo, cujos longos dedos nos escancaram os espasmos provocados pela decapitação. Note que elas estão num plano ainda mais destacado do alto relevo; parecem sair do quadro.
O tórax bem definido e a curvatura do soldado romano – um tanto desajeitada, com os braços colados ao corpo – nos apresentam a força do golpe que faz jorrar sangue aos borbotões. No chão, notei a ênfase no tipo de calçamento do local da execução, porém não consegui deduzir onde.
Após alguns instantes do desconforto provocado pelas minhas reflexões ante àquela cena, os desdobramentos me compeliram a continuar refletindo: por que Paulo foi decapitado e não crucificado como Jesus e Pedro?
De volta ao mapa de Roma
Eu tinha comprado um guia muito legal sobre Roma que contextualizava de modo satisfatório cada pauta ali contida. Como eu estava focada na trajetória dos apóstolos sob o viés histórico, fui folheando até que as catacumbas romanas me chamaram a atenção.
Ali eu sabia terem sido os locais das reuniões do protocristianismo. Era na famosa via da antiga república romana, hoje denominada Via Appia Antiga, onde os cemitérios se concentravam. Notei que era próximo à Basílica de São Paulo.
Do Colosseo, fiz o mesmo trajeto. No entanto, entrei no sentido das Termas de Caracalla e comi canela de cachorro até chegar à Porta de São Sebastião, hoje um museu: Museo delle Mura (Museu dos Muros).
De fato, de ambos os lados havia uma muralha adjacente. Era justamente a do imperador Aureliano, em que do lado de fora dos limites dela havia sido construída a Basílica de São Paulo. Em frente, do outro lado da rua, iniciava o trecho da Via Appia.
A Via Appia Antiga
Notei não haver calçada, somente um traçado de tinta demarcando miserável espaço para pedestres, pois a rua era mesmo muito estreita. Aliás, nem deveria ser liberado o trânsito ali. Ao atravessá-la, assim que pus os pés na Via Appia, fui tomada de sobressalto que me fez disparar o coração. Levei a mão ao peito. Olhei ao redor. Havia o de sempre: automóveis, turistas e ciclistas.
[… continua]
N.B.: O título do texto foi inspirado no documentário Looking for Richard, dirigido pelo Al Pacino. No longa, as pessoas nas ruas opinam sobre as obras do Shakespeare. Foi interessante confrontar os vieses, assim como foi rico e significativo para mim descobrir algumas entrelinhas procurando por São Pedro e São Paulo.
Maria Helena
Faço minhas as palavras do Veríssimo Costa. Bravo!
V. Costa
Bravo, Paulinha! Por meio de sua “narrativa-descritiva”, sempre tão precisa e envolvente, sinto como se eu estivesse “in loco”. Este “post” tem até cheiro.
Paula Esposito
Grazie mille! Quando a gente escreve sobre o que se ama são outros quinhentos! Você precisa ver o post que acabou de sair do forno: o da minha querida Via Appia! Além de estar cheiroso, também tem emoção! Foi o texto que mais gostei de escrever e escolher as fotos. Foi uma viagem de retorno as minhas descobertas acadêmicas e espirituais!