A ótica nerd da imigração italiana: O Irlandês

25 de janeiro de 2021 Paula Esposito

Princípio de 2020. Na casa de Marcelo, tagarelávamos displicentes sobre cidadania italiana, pesquisas genealógicas e imigração italiana. De repente, ele levantou o dedo no ar e disse ter algo que poderia me interessar. Acessou então um bate-papo entre diretor e protagonistas de O Irlandês. Concentrei-me nos tiozões ali na tela.

 

 

Reconheci imediatamente o Robert De Niro e o Joe Pesci. Este, eu não ouvia falar desde Esqueceram de Mim. O semblante simpático do Martin Scorsese veio vagarosamente à minha memória. Já o outro não reconheci. Perguntei quem era. O Marcelo me olhou de esguelha, incrédulo com a minha pergunta cretina. Esclareceu ser o Al Pacino. Eu devolvi a incredulidade ante a resposta tentando buscar algo no vácuo da minha memória, pois eu simplesmente não o reconheci.

 

Sobrenomes italianos

Martin Scorsese - The Irishman (olhar sobre a imigração italiana)

Martin Scorsese

A princípio, dos quatro ilustres figurões ali presentes a tecer a resenha, nenhum deles me seduziu em prestar muita atenção ao que estava sendo dito.

O que realmente me aqueceu o coração foi a compilação de italianíssimos sobrenomes. Curioso. Nomes tão manjados com os quais eu cresci a retumbar aqui na minha cabeça, somente agora se realçavam em óbvia eloquência: eles são descendentes de italianos.

Senti um imenso sorriso se escancarar. Lambeta, olhei para o lado: “Marcelo, você sabe a idade desses tios?” Este, com a feição mais lambida ainda, sorriu: “Esses caras aí estão beirando os oitenta! E estão bem, no maior gás! Deram show no filme!”

Dava gosto de ver a empolgação do Marcelo, mas o que eu queria mesmo era fazer contas. Lidar com a cidadania italiana tem dessas coisas: primeiro a gente pensa tecnicamente, depois chora de orgulho!

Agora concentrada e com o cenho franzido, eu observava o aspecto físico dos quatro senhores. Condizia com a informação do Marcelo. De fato, estavam bem: falantes, cabeludos, lúcidos e zoadores. Bonitões até. Considerando que eles eram mesmo da década de quarenta, então eles provavelmente eram filhos de italianos, ainda que seus pais tenham desembarcado nos Estados Unidos ainda criança.

 

A difusão dos sobrenomes italianos

Refestelei-me na poltrona. Meus pensamentos erráticos convergiram para o banco de dados das minhas pesquisas genealógicas. Os sobrenomes dos respectivos atores não constavam no meu acervo ou memória, exceto Pacino, o qual me apareceu de gaiato na pesquisa google quando da busca de outro sobrenome – Bardino – que descobri estar concentrado em outra ilha: a Sardenha.

Ali na tela, o Scorsese dá uma zoada com o personagem do Al Pacino, um líder sindical que se complicou nas mãos da máfia. Fui tomada por um fluxo de memória que me fez contrapor a quantidade de filmes de máfia italiana produzida por Hollywood e a quantidade de novelas de camponeses italianos produzidas pela rede Globo.

Ao observar agora aquele senhor barbudo, de olhar expressivo, voz roufenha e lisos cabelos em tonalidade que lhe cai bem, a lembrança de que “Pacino” é um sobrenome maiormente difundido na Sicília me fez refletir sobre outro viés da imigração italiana. Se, no Brasil, o grosso da imigração é oriunda do Veneto, nos Estados Unidos, seria ela proveniente do sul da Itália?

 

A imigração italiana como fenômeno geográfico

Resguardados os devidos exageros, distorções históricas e caricaturas, será que a gang do mezzogiorno – representada pelas máfias siciliana, calabresa e napolitana, tão exaustivamente expostas nos Estados Unidos – foi importada como efeito colateral de um fenômeno essencialmente geográfico? Afinal, não se ouve falar em máfia italiana no Brasil.

Talvez o meu questionamento soe um tanto simplista, mas, por mais que eu saiba que os Estados Unidos seja apinhado de ítalo descendentes, esse lado da dinâmica da imigração italiana simplesmente nunca tinha me chamado a atenção. A “diáspora italiana” por lá passa da casa dos milhões. Minhas reflexões foram interrompidas pelo final do bate-papo entre os quatro figurões. Aquilo ficou na minha cabeça.

Já em casa, num final de semana qualquer, aproveitei o ensejo para ver O Irlandês.

 

The Irishman - On the set

O clã de ítalo descendentes no set de filmagens de The Irishman (O Irlandês): Scorsese, Pacino e De Niro.

 

O filme

A abertura, em simbiótico acompanhamento da canção In the Still of the Night (Fred Parris and The Satins), a tomada de câmera com a qual mais me identifico: o plano sequência. A canção de ingênuo amor embala o travelling em plano aberto ao longo dos corredores e cômodos de um bem estruturado asilo.

Vemos idosos, funcionários e visitantes levando a rotina das respectivas fases das suas vidas até o momento em que a câmera vai fechando o plano em um senhor numa cadeira de rodas, sozinho à mesa. Fixa-se o close em seu rosto. Eis a dureza da solidão a alfinetar a doce melodia.

Pausei o filme e fui até o congelador buscar uma Heineken. Esparramei-me no sofá, aumentei o volume e joguei longe o controle remoto.

 

 

The Irishman - I Heard You Paint Houses

Jimmy Hoffa (Al Pacino)

Planos sequência X personagem acelerado

A primeira parte do filme – considerada essa o lapso temporal anterior ao aparecimento do líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino) – tem a narrativa bem descritiva.

O uso de planos sequência, a tensão que o trio de gaita-bateria-violoncelo do compositor Robbie Robertson nos provoca e a bem mensurada alternância entre silêncios e diálogos concisos deixam o filme lento. Bom de ser degustado.

O interessante é que justamente a lentidão da narrativa que vai provocando efeito de suspense; tão pungente que a gente até perde o fôlego. O cirúrgico contraponto que faz virar o ritmo do filme se dá na aparição do líder sindical Jimmy Hoffa, personagem do acelerado Al Pacino.

Ele – por telefone – mal cumprimenta o taciturno matador de aluguel Frank Sheeran (Robert De Niro) e o questiona à queima-roupa: “I heard you paint houses?” Bastou este sopro para compreendermos que o filme ficaria de pernas para o ar.

A propósito, foi também nesta tomada que finalmente consegui resgatar a imagem do Al Pacino: o rosto limpo e o cabelo “boi lambeu” eram o que tinha sobrado dos meus traumas cinematográficos do extinto Cine Cariru.

Felizmente, O Advogado do Diabo foi uma exceção. Lembro-me que fomos assistir ao filme porque o Keanu Reeves era o brotinho da crise da adolescência da época, mas foi o Al Pacino quem me arrebatou ao interpretar um capeta que levita incólume pelas nuances de doces e escrotas tentações.

 

Baseado em reais investigações

Bom, O Irlandês (seria mais um filme de gangster?) me chamou a atenção para um detalhe interessante: ele não é exatamente uma obra de ficção. O roteiro é uma adaptação do livro I Heard You Paint Houses, do advogado Charles Brandt.

Trata-se de minuciosa compilação das confissões de Francis Joseph Sheeran (Robert De Niro), braço direito de um dos mais renomados mafiosos da época, Russell Bufalino (Joe Pesci). Traz à tona uma visão mais orgânica da teia que envolve a máfia italiana e o sistema político dos Estados Unidos.

 

The Irishman (O Irlandês) - Baseado em fatos reais (um olhar sobre a imigração italiana)

O roteiro é uma adaptação do livro I Heard You Paint Houses, do advogado Charles Brandt.

 

The Irishman - Robert De Niro

Frank Sheeran (Robert De Niro)

Aqui não se vê qualquer menção ao desnivelamento sobre quem corrompe quem. Todos são corruptos. O realce se faz justamente sobre a simbiose que mantém a alimenta as alianças, para o bem e para o mal.

Uma cena que até comicamente demonstra isso é a da politicamente correta filha de Sheeran, Peggy (Anna Paquin).

Ela, ainda criança, apresenta um trabalhinho de escola sobre o movimento sindical nos Estados Unidos e explica que os sindicatos foram criados para defender o direito dos trabalhadores. Neste sentido, ela aponta a atuação do líder Jimmy Hoffa.

A cara que Sheeran faz ao ver a filha citar Jimmy Hoffa como exemplo de idoneidade até nos faz doer a ingenuidade da menina. Vale ainda dizer que ela cria uma relação de admiração e carinho com Hoffa desde então. E ele, por sua vez, corresponde ao carinho e a chama de “Sweet Peggy” até o final do filme, com ela já adulta.

 

Padrão de qualidade Scorsese

No final das contas, The Irishman se desnudou como um excelente filme, em que o Martin Scorsese se valeu dos ditos personagens redondos e optou pela imparcialidade no intento de deixar o espectador livre para extrair suas próprias interpretações sobre a máfia e os efeitos (intrínsecos e extrínsecos) que dela adveio.

The Irishman (imigração italiana) - Joe Pesci

Russell Bufalino (Joe Pesci)

Estranhamente, além de não ter levado nenhuma estatueta do Oscar, ainda zoaram o Martin Scorsese por ter cochilado no show do Eminem. Eu nem sabia que essa criatura ainda existia. Vai ver que não tinham nada melhor para requentar. Eu também teria puxado um ronco.

Enfim, Oscar sendo Oscar: tendencioso e mercadológico. Mas valeu o prêmio simbólico ao Parasita e o de melhor ator para o Joaquin Phoenix, em Joker.

Por fim, sistemática que sou, notei o pequeno deslize no italianesco colóquio entre Sheeran e Bufalino. Este troca o verbo imparare (aprender) pelo insegnare (ensinar). Perdoado. A pronúncia e cadência estão na medida. Lindo foi usar do diálogo como meio de homenagear o bel paese.

O filme é uma pequena obra de arte que nos apresenta de modo muito interessante um pedacinho da história italiana nos Estados Unidos. Recomento fortemente!

 

 

Comentário (1)

  1. Jésus Carvalho Espósito

    Magnífico, minha filha: a gente pensa tecnicamente, depois chora de orgulho.
    Assista “Na Calada da Noite”, com Meryl Streep. Ela tem a minha idade, 72, e ainda é considerada uma grande atriz.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *