Embora a conversa com o comandante da polícia municipal tivesse me dado plena consciência de que seria difícil reverter a negativa da residência e assim atrasar o processo da cidadania italiana, eu saí do gabinete tranquila o suficiente para me dirigir direto ao Anagrafe.
Cumprimentei o sr. Alessandro com a costumeira educação. Ele, sem se levantar da cadeira, devolveu o meu gesto com o inexorável sorrisinho corporativo seguido do corporativo “prego?”. Primeiramente, pedi desculpas pela balburdia do dia anterior. Ele assentiu com a cabeça. Narrei fidedignamente os esclarecimentos feitos pelo Comandante Giordano em relação ao entendimento do que seria a residência na Itália. Disse-lhe que eu pensava não haver motivos críveis para termos o pedido da residência negado e pedi para que a demanda fosse reconsiderada. Ele me fitou por cima dos óculos com os olhos chamuscando e disse secamente:
“Se vocês têm pressa o suficiente a ponto de não poderem fazer outro pedido de residência, retornem ao Brasil e façam o processo no Consulado.”
O achismo [ilegal] do funcionário da prefeitura em relação à cidadania italiana
Pronto. Finalmente o sr. Alessandro mostrou as garras. Fitei-o. Lacônica, perguntei se ele sabia quanto tempo leva a famosa fila de espera do Consulado para convocar um requerente. Ele franziu o cenho e respondeu que não. “Cerca de dez anos.”, esclareci. Ele ergueu as sobrancelhas e ficou em silêncio. Prossegui:
– Sr. Alessandro, não é difícil deduzir que, se uma família deixa seus entes queridos e se predispõe a gastar rios de dinheiro num país cuja conversão da moeda é um escândalo, é porque existem motivos contundentes. Considerando tais condições, parece um tanto óbvio que ninguém arriscaria tamanho investimento para fazer o processo de outra forma que não fosse a correta. Quanto a isso, sei que o sr. não tem dúvidas sobre o registro do contrato de aluguel e os três meses de pagamento antecipado.
Com as mandíbulas travadas, ele permaneceu em silêncio. Despedi-me e virei as costas. Chegando em casa, o sr. Montana, tenso, perguntou onde eu estava. Chamei todos à mesa e narrei o ocorrido, sobretudo o desfecho com o sr. Alessandro.
Dispondo de toda a minha sinceridade e objetividade, joguei as cartas na mesa:
– O Estado tem poder coercitivo. E o poder, neste caso, é representado por um funcionário de conduta duvidosa e que detém as decisões inerentes ao processo. O acesso ao arquivo da polícia é do vosso direito. O Comandante blefou ao dizer que isso não seria de grande valia, pois forjar uma fiscalização pode culminar em processo judicial. Quiçá criminal. A questão é que isso leva tempo e dinheiro. Isso não é vantajoso – senão impraticável – para o vosso contexto. Por isso a corrupção corre à revelia. Foi por isso que o sr. Elio disse não ser uma boa caçar confusão com o Comune. Os setores irão se acobertar mutuamente.
Ponderações, debate e decisão dos requerentes
Fiz uma pausa. O sr. Corando levantou a hipótese de sermos novamente currados caso optássemos pelo novo pedido de residência. A Mariana, sempre muito sagaz, objetou dizendo que seria muita burrice do Comune insistir num golpe tão grosseiro que já não funcionou bem por ter sido contestado por nós. Ela também salientou o fato de o Comandante ter me tratado com deferência, coisa que o soldado raso, Pablo, não havia feito.
Apontei para ela em gesto de concordância e acrescentei que a conduta do Comandante também me surpreendeu. Não que eu encarasse aquilo com a ingenuidade de que ele fosse o sujeito limpo da história, mas o fato é que a marca displicente dos envolvidos simplesmente desapareceu. O sr. Alessandro estava visivelmente com ódio. Era óbvio que o ocorrido já tinha retumbado por toda a prefeitura e causado clima de tensão.
Julguei pertinente expor que o sr. Alessandro, até por questão de vaidade, não lhes daria a residência em tempo recorde. No entanto, tentar brecar o processo se valendo de subterfúgios também não seria o caso. Por fim, ponderei que três meses de aluguel estavam pagos, do qual metade do tempo já havia sido consumido. Havia os 45 dias restantes para conduzir o que viesse.
A Mariana imediatamente alegou ter traçado planos pessoais e laborais em função do reconhecimento da cidadania e que ela não iria arredar o pé naquelas condições. A d. Filomena apoiou a decisão da filha. O sr. Montana, sem nada a acrescentar, disse para eu redigir a contra argumentação da negativa da residência e fazer o novo pedido.
O alinhamento com o sr. Montana
O sr. Elio foi convidado para almoçar conosco. Ele já estava ciente do ocorrido. Conversávamos tranquilos quando o sr. Montana apareceu e pediu para eu mostrar ao sr. Elio o pedido de reconsideração da residência que eu havia escrito. Assim o fiz. O sr. Elio leu atentamente, sorriu e disse que o meu Italiano tem um vocabulário extenso e acurado. Lisonjeada, desci a ladeira para imprimir o documento e namorar a paisagem estonteante.
Retornando do bucólico passeio, passei pela praça do Comune. Lá estava o sr. Montana ao sol. Ele fez um gesto para que eu me aproximasse. Lançando um tom entre a delicadeza e o protesto, ele disse – se referindo à minha conversa com o Comandante – que eu o tinha deixado de fora.
Pareceu-me uma excelente oportunidade de sanar, ou pelo menos, esclarecer, as rusgas oriundas dos nossos diferentes pontos de vista de pensar e encarar a vida. Sentei-me.
Diferentes âmbitos de trabalho
Respirei fundo e abri um sorriso meio gozado de quem teria que encarar um exímio engenheiro habituado aos padrões corporativos:
“Sr. Montana, é óbvio que a estrutura de refrigeração de um hospital se trata de um delicado e intrincado complexo de engenharia. Eu nem me atreveria a palpitar sobre nada. A questão é que uma peça de ar condicionado, por mais que prejudique todo o conjunto e possa jogar abaixo o funcionamento de um hospital, ainda assim é sempre algo inanimado a ser substituído.”
“Eu, por outro viés, lido com leis mal regulamentadas, lido com gente de todo os matizes, lido com culturas de dois burocráticos países e lido com contextos político-econômicos que mudam a todo instante. Um dos motivos do brexit foi o fato de as pessoas se valem da livre circulação na Europa para migram para a Inglaterra onde existem, em tese, melhores condições de vida.”
“Veja a encrenca que está sendo o navio de refugiados que o Salvini despachou para a Espanha. A questão “imigração”, a julgar pela atual conjuntura, se tronou uma chaga mundial. Infelizmente, o nosso direito à cidadania – talvez até pela ignorância sobre os regulamentos que nos protegem e diferenciam – está sendo jogado nesse balaio de gato. Isso estourou nas nossas costas. O Comune foi desonesto.”
“Quanto aos seus ímpetos face às consequências da sua ausência na empresa e o quanto o seu tempo é precioso, eu compreendo. Dependendo do que acontecer aqui, eu também terei que abrir mão de clientes ante a impossibilidade de assessorá-los, pois eu tenho processos em andamento e os documentos têm validade. Todos nós estamos sendo prejudicados.”
A cidadania italiana é uma contraprestação laboral
Parei brevemente para olhá-lo. Continuei:
“Eu conheço a sua admirável trajetória de funcionário de siderúrgica para empresário bem sucedido e já percebi claramente que o sr. é o centro gravitacional da sua empresa e da sua família. É muito notório o seu comportamento de chefe e patriarca. Não há mal nenhum. No entanto, eu não faço parte disso porque eu não sou a sua funcionária ou parente. Não existe hierarquia ou sobrepujança técnica entre nós.”
“Embora eu não me importe com a presença do lúcido sr. Elio, qual é a contribuição que ele trouxe? Quais foram as linhas que ele acrescentou na contra argumentação que eu escrevi com tanto esmero? Dos meandros do processo ele também não conhece porque ele veio até mim para perguntar.”
“Eu preciso de um mínimo de equilíbrio para continuar prestando o serviço pelo qual o sr. está pagando. Seria um tiro no pé eu levá-los para falar com um Comandante de polícia depois do stress ocorrido no Anagrafe e em casa. Se semelhante confusão acontece de novo, o que o sr. acha que o Comandante faria com vocês que nem residência têm? Pensa bem.”
Por fim, concluí quebrando o gelo: “Pensamentos culminaram com a imprescindível Engenharia, sr. Montana. Afinal, o nosso conterrâneo, o Leonardo Da Vinci, era engenheiro? Pintor? Escultor? Arquiteto? Pensador? O sr. é dono de singular inteligência e invejável cara de pau. Talvez as coisas funcionassem bem melhor se baixássemos a guarda um para o outro, em igualdade de condições.”
Com a expressão facial típica de quem navegava em concordâncias e discordâncias, ele me perguntou qual era o nome antipático da cerveja que eu tinha experimentado e gostado na festa dos alpinos. “Forst.”, respondi. Daí veio o melhor:
– Bora então tomar uma ali debaixo da concha acústica!
verissimo costa
Adoro a “narrativa descritiva” de sua andanças pela Italia, sempre permeada com um humor leve, acre e doce ao mesmo tempo. Sempre uma visão crítica sem perder sua “Italofilia”. O seu registro dos costumes, da mentalidade e da estruturação social e politica italianas me faz constatar o quanto os países de lingua neolatinas tem em comum, estejam eles na Europa ou na America Latina.
Ah, e as imagens bucólicas que voce posta? Adoro. Minha mente se transporta para tais regiões. É como se estivesse lendo as aventuras do comissário Salvo Montalbano, personagem dos romances policiais de Andrea Camilleri, ou algum romance do Leonardo Sciascia com seus exames metafísicos sobre corrupção política, burocracia, inoperância da maquina estatal, poder arbitrário, costumes culturais arraigados … mas tudo sem perder o charme do estilo de vida italiano.
Paula Esposito
Oi, Maninho! Que delícia ler suas palavras! Eu também adoro a argúcia com que você extrai as entrelinhas! Pois é, talvez até mesmo pela pungência da minha “italofilia”, acho importante esquadrinhar a dinâmica do Bel Paese com visão crítica; assim creio que posso contribuir em algo. Aliás, vou te contextualizar da minha “italofilia” (amei o neologismo) quando eu te apresentar a Via Appia Antiga.
Sim, verdade. Nas minhas andanças em Portugal e Itália, por tantas vezes tive a impressão de estar com os pés fincados no Brasil. Eu só me dava conta de estar na Europa, literalmente, em função dos sotaques, arquitetura urbana e geografia. Particularmente, eu acho que a herança cultural brasileira – em todos os âmbitos – é maiormente italiana. Portugal é bem menos burocrático e as pessoas são menos calorosas. Também neste “quesito”, nas minhas andanças pela Alemanha, chamou-me a atenção o abismo político-social que a separa dos países de língua neolatina.
Virão muitas imagens bucólicas, pois tentar captá-las em plenitude (impossível) é o que mais gosto de fazer! Quando fizemos um hiking nas Dolomitas, lembrei-me de Sete Anos no Tibet (fatos reais) em que o personagem Heinrich Harrer diz que escalar montanhas deixa a “mente limpa”. É verdade. A natureza nos traz alento!
É muito lisonjeiro e estimulante receber seu feedback, ainda mais em comparativo com tão ilustres escritores! Ainda iremos saracotear pelas nuanças do charme do dolce fare niente… Bear hug!