16 de maio de 2019 Paula Esposito

Meu primeiro caso de busca de certidão civil brasileira para fins de cidadania italiana, a julgar pelo contexto, deveria ser apenas um requerimento junto aos cartórios, mas se tornou a “história de pescador” que costuma ocultar o mal funcionamento deles.

 

Em 2015, um cliente me procurou para arrolar a documentação inerente ao processo da cidadania italiana. Informou que seria coisa simples porque já existiam familiares que tinham a prática concluída. Confesso que fiquei meio cabreira com o “simples”. Perguntei se ele havia cópias dos documentos.

Sorridente e tranquilo, ele empunhou um envelope não muito recheado. Ainda que “por alto”, constatei alguns documentos irrisórios e outros faltantes. Perguntei quando os demais processos da família tinham sido concluídos. Ele encolheu os ombros e disse que me passaria o contato de alguns parentes para que eu os procurasse caso fosse necessário colher alguma informação.

Na simbiose da minha mesa de trabalho, fui esquadrinhar os documentos. A família em questão, na dinâmica da migração interna, teve seus ascendentes italianos a se estabelecerem em Santa Teresa (colônia italiana no ES) e seus descendentes a se deslocarem para Minas Gerais.

 

Certidão de Óbito para a cidadania italiana?

Chamou-me a atenção a ausência dos óbitos. Estes sempre são ponto de polêmica, uma vez que não são pontualmente explicitados na Circular K 28, porém costumam ser exigidos nos processos administrativos na Itália, o qual era o intento da família. Entrei em contato com parentes, mas ninguém soube informar do óbito do dante causa. Pelo sim ou pelo não, resolvi correr atrás.

Já munida das certidões em inteiro teor da filha do italiano, constatei que tanto o nascimento quanto o casamento dela se deram na residência do pai, em local denominado Cabeceira do Rio Mutum, no distrito de Vinte e Cinco de Julho do município de Santa Teresa. Devido mesmo à localização, deduzi que o registro do dante causa tivesse sido feito nessas imediações.

Ao telefonar para os cartórios da cidade, a típica dinâmica interiorana: todo mundo conhece todo mundo. Os próprios cartorários, em caso de negativa, indicaram outros cartórios. Explicaram que, ao longo do tempo, este ou aquele pedaço de terra passou a pertencer a outros distritos. O fato é que o registro do óbito do italiano não constava nem nos cartórios mais longínquos.

Isso me parecia estranho, pois não condizia com o fato de duas gerações de descendentes terem vivido e fixado residência no mesmo local. Não parecia plausível que o dante causa tivesse seu registro de falecimento em lugar muito fora dali. Ainda que ele tivesse sido acometido por alguma doença contagiosa em algum cantão de lavoura e tivesse sido segregado para morrer, a família teria sido notificada. Ou teria ele sido enterrado como indigente?

 

O registro de imóveis

Novamente procurei familiares, os quais reafirmaram que o italiano havia vivido e morrido na região da tal Cabeceira do Mutum, mas do registro do óbito, nada. Resolvi então usar outros meios de busca: registros de imóveis e dos cemitérios. Em consulta ao Cartório de Registro de Imóveis descobri que a chácara de proporções consideráveis havia sido vendida.

Como todo mundo conhece todo mundo, a cartorária me passou o contato de um dos familiares que havia comprado o imóvel, uma senhora. Telefonei e indaguei sobre a compra do terreno. Ela, muito solícita, disse que a família o tinha comprado fazia bastante tempo. Perguntei então sobre o contexto da compra, se ela chegou a conhecer o antigo dono.

Após soltar uma leve gargalhada, ela exclamou: “O italiano que foi enterrado lá nos fundos?!” Embora eu soubesse que enterros em propriedade privada não são permitidos no Brasil, permaneci quieta para ver onde a lenda iria parar.

 

O fantasma

Na inércia do meu silêncio ela ajuntou: “Ó, minha filha, isso deu o que falar porque o pessoal de antigamente leva a sério essa coisa de fantasma e não gosta de ter um perambulando no quintal!” Senti o meu sangue descer. Apoiei minha testa em uma das mãos, fechei os olhos e pensei com meus botões: “Pronto. Desovaram a ossada do italiano na cabeceira do rio Mutum.”

Sem antes pegar mais meia dúzia de nomes de parentes, agradeci pelas informações. A data da venda da chácara coincidia com a suposta data de morte do italiano. Ainda com a cabeça apoiada em uma das mãos, com a outra, comecei a revolver as certidões mecânica e aleatoriamente.

Com os pensamentos desconcentrados de todas aquelas linhas, um lampejo veio à memória: meu cliente havia dito que algum dos ascendentes teve um segundo casamento. E se a parentada do lado de lá fosse melhor informada?

Pesquisa de lá, telefona de cá, indicaram uma pessoa que “costuma guardar papelada”. Desconsiderei a colocação jocosa em favor de um “Graças a Deus” por existirem pessoas que mantêm viva a memória da família. A pessoa indicada – uma mulher firme e objetiva – afirmou existir sim o registro de óbito do dante causa. Perguntei sobre a história do enterro no fundo do quintal.

Ela riu discretamente e deduziu que a “lenda” deve ter surgido do fato de ele ter falecido de morte natural na própria residência e lá ter sido feito o velório. Expliquei que eu já havia procurado e pisoteado os cartórios de todos os recônditos da região, mas o registro do óbito não aparecia. Ela estranhou, mas reafirmou seus dizeres.

 

Finalmente, o digno registro do dante causa

Diante do impasse, ela se predispôs a procurar alguma cópia perdida nas profundezas de alguma gaveta. Agradeci já um tanto aliviada, afinal, era mais plausível algum cartório ter feito busca malfeita do que enterrarem um defunto nos fundos da casa. Em torno de uma semana depois, recebo no meu e-mail o scanner da certidão de óbito já amarelada e remendada de durex. O cartório que a expediu foi o PRIMEIRO que eu havia entrado em contato.

Ao questionar o dono do cartório sobre o porquê de tão primário e grosseiro erro, a justificativa recaiu sobre o fato de ser certidão averbada. Patético, pois os números do livro, folha e ordem são os mesmos. Se os cartórios têm exercício em caráter privado por delegação do poder público para prestar serviços extrajudiciais, logo se vê que o fardo da tradicional ingerência brasileira não passa pela retórica público / privado.

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