Umas das recorrentes confusões sobre o reconhecimento da cidadania italiana é a via materna. Ainda persiste a dúvida de que a presença de mulheres na linha de descendência impede a transmissão da nacionalidade italiana.
Quando surgem conversas referentes à cidadania italiana, são reincidentes frases do tipo “minha mãe nasceu antes de 1948”, “tem mulheres na minha linha de descendência que nasceram antes de 1948” ou a genérica “na minha família existem mulheres”. A dúvida paira entre os referenciais “mulher” e “1948”. Porém, a questão feminina remonta aos dispositivos legislativos anteriores à promulgação da Constituição da República Italiana de 1948.
O Estatuto Albertino e o Código Civil Italiano de 1865
Resumidamente, o entrecortado de entes territoriais que compunham a península itálica foram unificados em 1861 sob a regência do então Reino Piemonte-Sardenha, de modo que a Itália unificada passa a existir e funcionar como Estado-nação calcada na já existente estrutura jurídica desse reino predecessor. Portanto, a Carta Fundamental do recém-nascido Reino da Itália foi o Estatuto Albertino, já promulgado em 1848.
O Estatuto Albertino não se tratava exatamente de uma Constituição, mas era a lei básica que regia o então Reino Piemonte-Sardenha e foi recepcionado para o mesmo fim no Reino da Itália. Além disso, por não ser uma Constituição, ele poderia ser emendado mais facilmente. No entanto, por ser um conjunto de princípios normativos que tinha muitas limitações práticas em lidar com um Estado alargado, as normas do Estatuto Albertino passam a não suprir as novas demandas.
Portanto, do ponto de vista do arcabouço legal, o primeiro movimento importante ocorrido no Reino da Itália foi a elaboração do Código Civil de 1865 que, em relação à transmissão da nacionalidade italiana, estabelece normas simples e diretas logo nos seus primeiros artigos. Neste particular, o artigo 4º traz a base da cidadania italiana que, até hoje, essencialmente não foi modificada:
“È cittadino il figlio di padre cittadino.” (É cidadão o filho de pai cidadão.)
O jure sanguinis
Ao decretar que “È cittadino il figlio di padre cittadino.”, o legislador afirma que, havendo o reconhecimento do filho pelo pai, o filho terá a nacionalidade italiana. Embora este princípio seja denominado jure sanguinis – direito de sangue – o termo melhor empregado é o direito de filiação, pois não basta ter o sangue de pai italiano; é necessário que o pai o reconheça como filho.
Por conseguinte, o fato gerador da nacionalidade italiana é (1) o nascimento e (2) ser reconhecido pelo pai, ou seja, que se estabeleça o vínculo de filiação entre o filho e o pai. Porquanto que a nacionalidade seja transmitida pelo reconhecimento do vínculo de filiação, trata-se de ato involuntário, independente de manifestação de vontade.
Segregação da descendência pela linha materna?
Em relação à questão feminina, embora pouco seja dito (ou sabido), o Código Civil Italiano de 1865, em seu artigo 7º, reza que o filho não reconhecido pelo pai – ou seja, filho de mãe solteira – sendo a mãe italiana, ele teve a nacionalidade transmitida ao nascer (grifo amarelo).
A título de curiosidade, o mesmo artigo 7º prevê a aplicação residual do direito de solo (jure soli) no caso de bebês abandonados: na ausência de ambos os genitores, é cidadão a criança nascida em território italiano (grifo verde).
Salienta-se que ambas as previsões do supracitado artigo foram recepcionadas pelas subsequentes leis de 1912 e 1992, de modo que a restrição para filhos de mulheres italianas nascidas antes de 1º de janeiro de 1948 não se aplica quando a criança é filho somente da mulher. Considerando, por exemplo, que uma mãe solteira italiana teve um filho no Brasil em 1905, não cabe a discussão de ele ter nascido antes de 1948: a criança é italiana porque o artigo 7º do Código Civil de 1865 previu essa condição.
A lei orgânica nº 555 de 13 de junho de 1912
Promulgada no contexto sucessivo às emigrações transoceânicas em massa, a Lei nº 555 de 13 de junho de 1912 veio a suprir demandas que o Código Civil de 1865 já não conseguia mais enfrentar: entre 1875 e 1910, foram milhões de italianos a causarem um vácuo demográfico na sua terra natal e terem filhos no exterior, fato a gerar uma série de questões outras relacionadas à nacionalidade.
Embora essa lei orgânica tenha sido a primeira norma a tratar exclusivamente da cidadania italiana, ela manteve seu embasamento em automatismos (à revelia da vontade dos indivíduos), de modo a alterar muito pouco os princípios do Código Civil de 1865. Sendo assim, a lei nº 555 de 1912 prevê:
Art. 1º – È cittadino per nascita: (É cidadão pelo nascimento)*
§ 1º – Il figlio di padre cittadino. (O filho de pai cidadão)
* Ser cittadino per nascita significa a cidadania originária: o indivíduo nasce cidadão. A expressão “ser italiano nato” não tem conexão com ser nascido em território italiano.
Vale ressaltar que a lei é reflexo da mentalidade da época – a proeminência do homem sobre a mulher – de modo que a cidadania italiana seria transmitida via masculina. Ademais, no núcleo familiar deveria existir apenas uma nacionalidade, sendo o referencial aquela do pai: todos os filhos e a esposa, involuntariamente, teriam a nacionalidade do pai.
O referencial “mulher”
A esposa, portanto, adquire automática e involuntariamente a nacionalidade do marido. É neste contexto que a presença da mulher na linha de descendência da transmissão da cidadania italiana se torna um empecilho. Este efeito específico do dispositivo, a nacionalidade das mulheres cônjuges de italianos, somente deixa de existir em maio de 1975 em função de conflitos com a intercorrente Constituição de 1948.
Novamente, os parágrafos subsequentes (2º e 3º) da lei de 1912 recepciona a previsão do Código Civil de 1865 que, sendo o pai desconhecido, o filho de mãe solteira receberá a nacionalidade da mãe. Idem os expostos (filhos abandonados).
A lei nº 555 de 1912 – apesar de algumas modificações (como a da nacionalidade das mulheres) – durou 80 anos, quando entrou em vigor a nova lei da cidadania italiana, em 1992.
A Constituição da República da Itália de 1948
O fim da 2º Guerra Mundial, quase na metade dos 80 anos da vigência da lei de 1912, devastou a Itália e a empurrou para o Regime Republicano de governo após o plebiscito de 1946. Na sequência, a recém-nascida República da Itália promulga a sua Constituição que passa a vigorar em 1º de janeiro de 1948.
Enxuta, a Constituição da República da Itália é dotada de princípios fundamentais. Influenciada pelos movimentos em favor dos Direitos Humanos que marcaram o pós-guerra, o seu artigo 3º traz o princípio da isonomia e, portanto, a equiparação do valor da mulher.
No entanto, no ato da promulgação parece não ter existido a revisão dos dispositivos conflitantes que não seriam recepcionados – ou, pelo menos, não integralmente – pelos princípios fundamentais da nova Constituição. Teria sido necessário declará-los inconstitucionais para que o legislador os adaptasse à nova Carta Magna.
Foram justamente alguns dispositivos da lei orgânica de 1912 a entrarem em dissonância com o princípio da isonomia previsto no artigo 3º da nova Constituição, pois eram óbvias as condições discriminatórias da mulher em relação ao homem no que tange à transmissão da nacionalidade.
Conflitos constitucionais
Na esteira do pós-guerra, portanto, as melhorias nas redes de comunicação e circulação de pessoas (viagens) impuseram situações de ordem prática que tornou insustentável a perda automática da nacionalidade de mulher italiana que se casasse com um estrangeiro e a impossibilidade de transmiti-la aos filhos. Neste particular, dois dispositivos da lei nº 555 de 1912 caíram por causa de duas sentenças da Corte Constitucional:
1. Em 1975, após 27 anos da promulgação da Constituição de 1948, a Corte Constitucional declarou inconstitucional o inciso 3 do artigo 10º que rezava a perda involuntária da nacionalidade italiana da mulher ao se casar com um estrangeiro cuja nacionalidade lhe era transmitida;
2. Após 8 anos, a sentença de 1983 declarou inconstitucional um trecho do artigo 1º, o qual previa que somente o homem poderia transmitir a nacionalidade aos filhos. A partir então da data de 21 de abril de 1983, a mulher passou a poder transmitir a nacionalidade aos filhos, retroagindo os seus efeitos constitucionais a partir de 1º de janeiro de 1948.
O referencial “1948” é consequência do efeito retroativo da lei nº 123 de 1983
É muito importante deixar claro que não existe uma “lei de 1948”. Não foi a partir da entrada em vigor da Constituição da República Italiana de 1948 que as mulheres passaram a transmitir a nacionalidade aos filhos: isso efetivamente ocorreu somente a partir de 27 de abril de 1983, sendo que o efeito dessa disposição de ilegitimidade retroagiu a partir de 1º de janeiro de 1948.
Vale ressaltar que os efeitos retroagiram somente a partir de 1º de janeiro de 1948 porque a Corte Constitucional não pode declarar inconstitucional algo que é pré-constitucional.
A atual lei da cidadania italiana nº 91 de 5 de fevereiro de 1992
A promulgação da vigente lei orgânica nº 91 de 5 de fevereiro de 1992 manteve o principal meio de aquisição da nacionalidade italiana, o jure sanguinis. Ainda na esteira dos adventos da modernidade, uma situação importante que já não encontrava sustentação na lei era o fato de os italianos emigrados ao redor do mundo terem se naturalizados nos seus países de residência no exterior.
Sendo assim – para além da incorporação das decisões da Corte Constitucional de 1975 e 1983 – a lei de 1992 trouxe como novidade propriamente dita a permissão que o cidadão italiano se naturalize estrangeiro sem perder a nacionalidade italiana. Até 16 de agosto de 1992, as pessoas que se naturalizavam por qualquer motivo, em qualquer circunstância, perdiam a nacionalidade italiana.
Em relação à transmissão da cidadania italiana pela linha materna, tendo a atual lei orgânica recepcionado as supracitadas decisões da Corte Constitucional, ao filhos/filhas de mulher italiana nascidos após 1º de janeiro de 1948, o pedido de reconhecimento da cidadania italiana será feita administrativamente (consulados ou prefeituras italianas).
Por outro lado – como consequência de a lei nº 123 de 27 de abril de 1983 não retroagir ao período pré-constitucional – aos filhos/filhas de mulher italiana nascidos antes de 1º de janeiro de 1948, a via de saída para o reconhecimento da cidadania italiana será a judicial.