Os berros da galera, para quem a vinheta era novidade, me fizeram rememorar e sentir semelhante emoção na abertura do show de Milão. A noite prometia, pois os tugas pareciam bem mais quentes que a plateia italiana.
O Mark veio caminhando devagar e bonachão em meio aos outros. Antes de se sentar na cadeira giratória azul de listra branca, ele parou de frente para a multidão, abriu um sorrisinho lambeta, acenou e pegou a sua Gibson Les Paul. Galera surtou. O sorrisinho virou gargalhada. Ele apoiou parte do corpo na cadeira, deixou uma perna livre, fitou os espectadores por rápidos segundos e disse com pesado sotaque: “Boa tarrrde! Hello!” Da flauta transversal do Michael McGoldrick veio a melodia celta.
O setlist bem selecionado dentre os discos da carreira solo do Mark Knopfler
Border Reiver é uma das minhas prediletas. Ao contrário do que ocorrera em Milão, onde eu meio que passei mal de emoção pelo fato de a carreira solo do Mark ser a trilha sonora de uma parte crucial da minha vida, ali em Lisboa eu estava tranquila para degustar o show. Essa canção é mesmo propícia para fazer decolar um espetáculo, pois tem “pegada” acelerada, com base country e melodia celta.
Quando a música acabou, ele sorriu e disse: “Muitoo obrigatoo! Thank you very much!”. Ante aos surtos da galera ele brincou: “I got a new one. Don´t worry!” A gostosa What It Is veio acompanhada das palmas do público marcando o compasso. Emendada ao fim dela veio o dedilhado em clima mais reflexivo da linda Sailing To Philadelphia.
Talvez por sugerir reflexão, foi o momento que o pessoal se calou para prestar atenção. Acho que para a surpresa do próprio Mark (e minha também), as palmas explodiram ao final da música. Parecia que o público de Portugal era melhor familiarizado com a carreira solo dele. “Muitoo obrigatoo!”, agradeceu de novo.
Na sequência, Coyote foi introduzida pelo contrabaixo acústico do simpático e discreto (e fera) Glenn Worf. Temperamento de baixista. A introdução da música, blues rasgado, foi improvisada e estendida pelos músicos. A galera assistia com os olhos vidrados e pontinha de sorriso, ao passo que o Mark estimulava dizendo “yeah yeah”. Essa música é curiosa de ouvir porque realmente vemos plasmado no arranjo do teclado a cara de tacho do coiote!
O Richard Bennett deu dois passinhos para frente, pegou o ukulele e começou a dedilhar Hill Farmer´ s Blues, música que sempre me aperta o coração desde a primeira vez que a ouvi. Mal o dedilhado apareceu, muitas pessoas comemoraram.
A bem antenada plateia portuguesa
Aliás, eu me surpreendia com a plateia a cada música: todas elas espalhadas por diferentes discos da carreira solo do Mark Knopfler e nada de Dire Straits. Isso me levava a deduzir a própria conduta do Mark no palco. Ele estava visivelmente empolgado, anormalmente sorridente e falante. Fazia sentido a história de que a empolgação dos espectadores influencia os ânimos no palco.
A diferença do show de Milão era eloquente. É bem verdade que lá tiveram as cadeiras, coisa que já aparta e arrefece o público. Além do mais tinham muitos idosos e o próprio Mark parecia exausto e gasto pela agenda de shows. Em Lisboa, curiosamente, havia muitos jovens e a maior parte deles bem antenados com a trajetória solo dele. Provavelmente isso o felicitou e deu gás novo. Melhor para nós que desfrutamos de uma noite ímpar!
O previsível setlist da herança Dire Straits
Fez-se total penumbra no palco. Um pianinho a mim quase familiar arrancou gritos e palmas dos mais nerds. Um pontual feixe de luz se projetou sobre a cromada guitarra celebridade. Berros. Assovios. Romeo And Juliet, tal como o livro, mantém o enredo do amor que foi apartado. Felizmente não se trata de baladinha água com açúcar. Geral curtiu a adaptação do verso original em favor do “all i do is keep the beat and rock n´ roll”. Eis a cara lambida do Mark.
Trocando uma guitarra celebridade por outra, a Fender Stratocaster vermelha e branca, ele gritou “Alright, Danny” (o baterista) e mandou Sultans Of Swing. Pronto. Campo Pequeno no chão. Fui tomada por paradoxal sentimento por estar de saco cheio de ouvir essa música ao mesmo tempo em que eu desfrutava de rara oportunidade de vê-la tocada pelo seu criador. Fiquei ali manjando.
E valeu mesmo a pena, pois ele improvisou riffs, solo, letra e chamou a galera praticamente a música inteira. No solo épico, momento merchandising do show, o Mark joga a guitarra meio de lado, a apoia sobre a coxa num estilo meio guitar hero farofa, aperta o olhos e escracha seu dom. Entrei na onda e tirei uma foto do abuso. O cara é foda. Aquela foi a melhor Sultans Of Swing do planeta!
Livre arbítrio no delicioso setlist da carreira solo
Veio a pausa para apresentar a banda, não sem antes elogiar a beleza arquitetônica do Campo Pequeno. Entre piadas referentes a cada membro e gargalhadas do público, o frisson deu uma acalmada e deu vazão ao acordeão e violino que introduzem aquela prece ao expurgo das guerras civis, a chamada Done With Bonaparte. E a prece eu fiz ao meu doce Rafael Berg que simplesmente era louco por essa música.
Marbletown evoca o próprio bang bang nas tempestades de areia musicadas pela pegada country que o Mark tanto gosta. O ponto alto foram as improvisações. Os músicos se esbaldaram e nenhum se sobrepôs ao outro, tamanho o talento.
Eis que o violino chama a minha predileta: Speedway at Nazareth. Prendi a respiração e lhe dediquei toda a minha atenção. O solo final, que se desenvolve num crescendo de melodia e temperatura, trouxe as minhas memórias e me provocou um brado tão forte que as pessoas do entorno me olharam bestificadas. E ainda descontei a praga que o porquinho de Milão havia me rogado: filmei o Danny Cummings voando na bateria!
Novas roupagens no setlist do Dire Straits
Novamente a flauta substituiu o discreto teclado de Telegraph Road e nos anunciou a sua versão easy, toda permeada por delicada melodia ao piano e adaptada para um tom confortável à voz do Mark. A mesma tocada em Milão. Também nesta canção o Mark teve o cuidado de chamar a galera. E talvez para compensar a ausência da pegada visceral da música, o solo final foi quase fiel ao original. O Campo Pequeno quase veio abaixo.
Na sequência, veio Brothers In Arms cantada em uníssono por nós e o Mark. Destaque para a melodia do acordeão que parecia fazer jogo de pergunta e resposta com o resto do arranjo da música. Para quebrar a melancolia deixada por essa canção, nada melhor que a rainha da “dança da vassoura”: So Far Away.
Dos conhecidos acordes da introdução da música e dos “alrights” ditos pelo Mark, a galera engatou palmas para marcar o compasso da música e assim permaneceram até o final. Eu que ainda nutria o paradoxo da música cantada à exaustão, me derreti quando o Mark cantou “here i am again at this Lisbon town”. Foi legal mergulhar no clima típico da adolescência 80´s.
Fim do espetáculo: dessa vez, degustado.
Despediram-se do público. Eu já sabia ser charminho. Fiquei atenta para ver se algum desavisado se despregaria da fila do gargarejo, mas ninguém arredou o pé. Todos bradaram “olê olê olê olê… Mark Mark” Então me contentei em esperar o retorno de Jedi bem do jeitinho que eu estava. Voltaram. Senti a dorzinha no peito por saber que o fim se aproximava.
Foi quando o acordeão e gaita de fole anunciaram Piper To The End. Deixei a lindíssima música fluir. Final estendido da canção. Sorrisos da plateia e músicos num adeus regado a copos (de plástico) de cerveja Sagres, coisa que o discreto Mark Knopfler mamou com o boca mais boa desse mundo.
Chamou-me também a atenção, a despeito do que se vê no meio artístico, o fato de todos os músicos estarem visivelmente sóbrios, tranquilos e se divertindo ao tocar seus instrumentos. É muito interessante contrastar um show de som ensurdecedor ser marcado por tamanha leveza.